APONTAMENTOS SOBRE CONSERVAÇÃO E PROCESSAMENTO DOS ALIMENTOS NO SERTÃO DE ANTIGAMENTE



MLUIZA
Pai e mãe é muito bom
Barriga cheia é mió;
Eu, tando com a minha cheia,
Tou com pai e mãe e vó,
Tou c’as parenteia junta
E os meus irmão ao redó.”
(Rita Medeiros, verso compilado por Leonardo Mota e publicado no livro Os cantadores)
Vem dos indígenas o embrião da nossa arte culinária. Processando os alimentos disponíveis, eles cuidavam da sua alimentação produzindo inclusive bebida a partir da fermentação do amido da mandioca.
A partir do século XVIII os registros se tornam mais precisos com informações que dão conta do fabrico de açúcar em Fortaleza e no Cariri, do cultivo do trigo em Acaraú, do uso do milho e da mandioca, da existência de pimentas longas nas regiões serranas, do consumo de carne, de pouca galinha, do leite e seus derivados, de algumas frutas, do caju e da carne de caça. Da primeira metade do século XVIII até o século XIX a farinha foi fundamental na alimentação do sertanejo. No fim do século XIX  aparecem os legumes e hortaliças silvestres, tubérculos vegetais, melão, melancia e peixes. Melancias, melões e  jerimum já eram plantados em vazantes nas margens do rio Jaguaribe. 

As refeições dos mais pobres incluíam as aves domésticas, carne dos seus rebaçnhos de miuças, mel de abelha selvagem, carne de caça e os peixes, pescados nos poços dos riachos ou nos açudes. Os peixes mais comuns eram a curimatã, a traíra, o piau e a piranha.Quando Koster esteve em nossa região, no século XIX, fez anotações sobre a pobreza da alimentação da população pobre na época da seca onde, segundo ele, comia-se uma massa de carnaúba. Gardner, outro viajante estrangeiro, expressa sua admiração sobre um Cariri verdejante diante das regiões mais secas do Estado.
Lamartine de Faria, escrevendo sobre os sertões do Seridó, oferece informações essenciais para conhecer as práticas que envolvem a conservação dos alimentos em tempos antigos. Selecionei do seu trabalho alguns tópicos que norteiam este post e ajudam a compreender o nosso passado gastronômico. Muitas dessas práticas eu convivi ainda criança, entre os anos 50 e 60 no século XX, tanto  no sítio do meu avô quanto em vários outros que eu frequentei nesse período. Outras, eu ouvi contar pelas pessoas com quem convivi. Vale salientar que eu fui criada por avós que nasceram  no fim do século XIX e início do século XX, foram  criados por pais que viveram plenamente o século XIX e, portanto, a permanência de certos hábitos daquela época ainda eram muito presentes nos ambientes onde eu vivi a minha infância.
A nossa incursão pelo assunto segue o roteiro proposto na obra de FARIA ( 1980) e se enriquece de informações de outras obras acrescidas com as minhas modestas lembranças.
ÁGUA
Num clima com tantas dificuldades, morar perto das ribeiras foi fundamental para a sobrevivência da população e dos animais. Tanto as trilhas originais quanto as primeiras fazendas foram instaladas nessas proximidades.
Os poços naturais e as cacimbas cavadas nas areias dos rios ajudavam a ultrapassar o período de estiagem. Também, longe dos rios, buscavam-se veios d’água para cavar cacimbas utilizando como instrumentos alavancas, picaretas e pás. Outra fonte de água eram os lajedos naturais que juntavam a água de chuva ou as águas que para ali corriam formando uma espécie de tanque. Os açudes vieram depois para represar águas dos riachos.
Transportada em sacos de couro conhecidos como ‘borracha’ e também por cabaças, . a água era geralmente utilizadas para lavar roupas e para os serviços domésticos. Os sacos de couro também eram utilizados para conduzir água em longos trajetos por manterem a água fresca e límpida. O uso da cabaça é uma herança indígena. Depois, vieram as ancoretas carregadas geralmente por jumentos.
Ancoretas
Com o tempo, passaram-se a utilizar os camburões transportados por carroças puxadas a burro. Esse tipo de transporte utilizado também nas pequenas cidades eram operados pelo ‘botadores de água’ que atendiam as residências. 


Latas de querosene Jacaré reutilizadas também faziam parte dos artefatos para transporte de água muitas vezes carregadas sobre a cabeça das mulheres que utilizavam uma rodilha sob a lata para dar mais conforto e equilíbrio à tarefa.


Em casa, a água para consumo doméstico era coada, através de saquinhos de algodãozinho, que se colocavam na boca do pote de barro. Alguns poderiam utilizar uma pedra de enxofre dentro do pote para evitar a proliferação de martelos. Tampava-se a boca do pote com um texto de tábua e às vezes de panela. Eu cheguei a ver saquinhos que eram uma espécie de toucas para proteger a boca do pote. Os potes eram instalados sobre cantareiras, uma espécie de forquilha ou base de madeira. Haviam suportes individuais e duplos ou triplos. Muito tempo depois, apareceu o suporte fabricado com vergalhão de aço.

Cantareira de madeira
Cantareira de vergalhão de aço


Acima do pote, ficavam os copos numa bandeja sobre a SUA tampa ou em um suporte de madeira. Junto, uma caneca de cano longo era utilizada para tirar água do pote. Na minha infância, na casa do meu avô, as crianças tinham copinhos de alumínio coloridos e gravados com o nome de cada um. Os familiares utilizavam copos de alumínio e as visitas copos de vidro do tipo que atualmente chamamos copo americano. A água também era colocada em jarras e quartinhas feitas de cerâmica. Nesse processo, a qualidade do serviço do louceiro era fundamental na confecção desse tipo de recipiente.  Uma louça boa precisava ser bem acabada, bem queimada e esfriadeira. A evaporação da água na superfície exterior do recipiente era o que resfriava o vaso. Posteriormente, chegou o filtro de cerâmica com velas internas para filtrar a água. O uso dos filtros foi objeto de muitas campanhas de saúde. 
Quartinha
Cantareira compartilhada: tradicional e moderno
Aproveitar a água da chuva após as primeiras lavagens das telhas no inverno e recolhe-las em depósitos e/ou tanques era fundamental tanto para os gastos da casa quanto para alvejar a roupa encardida pelas águas represadas nos tanques naturais e/ou nos açudes durante a estiagem. Depois, chegaram as cisternas, feitas de alvenaria e impermeáveis , com maior capacidade de armazenamento permitindo assim mais tranquilidade na travessia do período de estiagem.

GADO
O gado foi fundamental para a alimentação do sertanejo. As carnes eram a maior fonte de nutrientes para a população. Se o colonizador trouxe a carne, os temperos foram presente dos índios. Temperada com pimenta, principalmente a de cheiro, misturada com sal e às vezes com farinha, a carne bovina, as miuças, a carne de caça e o peixe eram, do ponto de vista nutricional,  a principal ração do sertanejo. Nesse contexto, a paçoca, carne desfiada, pilada e esfarinhada era o farnel que acompanhava o viajante, o vaqueiro e os comboieiros nos caminhos sertanejos. A carne de sol era a base deste cardápio. A paçoca de peixe, piracuí, tinha preparo similar. O queijo e a rapadura completavam a ração do sertanejo.
Para quem se interessar, FARIA (1980) oferece o passo a passo do processamento da carne de sol.

LEITE
A tal seca dos oito
Serviu-me até de gracejo
Quando eu queria cajá
O meu rebolo era queijo...
(...)
A fartura do sertão
É leite, é coiada, é queijo;
Do meio da seca em diante,
Outra fartura eu não vejo”
(Sobre a seca de 1888, o cantador Pedro Nonato fez os versinhos acima registrados por Leonardo Mota.) 

O leite e seus derivados estavam presentes praticamente em todas as refeições. O leite recém ordenhado, espumoso,  tomado no caneco antes do café da manhã  , a nata, a coalhada, o queijo, a manteiga. O leite também era utilizado em sopas, bolos e no pirão de leite.
Haviam três tipos de queijo: de fogo ou manteiga, de coalho e de prensa. Cada um deles demandava um processamento diferenciado. O queijo, de coalho, era normalmente feito por aqueles que dispunham de menos leite. É um queijo de consumo mais imediato e tende a endurecer com o tempo. Pode ser feito também de leite de cabra e, eventualmente, de ovelha, ambos com o sabor diferente do queijo de leite de gado. Em algumas fazendas a fabricação de queijo era feita num cômodo separado com essa finalidade. A produção de exigia uma infraestrutura diferenciada e o uso de muitos utensílios. O termo catrevage denomina o conjunto de instrumentos utilizados na produção do queijo: alguidar, batedeira ou palheta, caneco, cincho, colher de pau, cuia, ferro de consertar ou de queijo, lata, legre, pano de cincho, pano do leite, relho, saco de coalhada, tábua de cincho, tacho, trempe e urupema. Cada um desses objetos tinha sua finalidade no processo produtivo. E, finalmente, o jirau que era um estrado de madeira pendurado nos caibros das cozinhas e/ou despensas e protegidos por latas e cuias contra a investida dos ratos.
LAMARTINE registra a receita - passo a passo - do famoso queijo de manteiga do Seridó. O processo era similar na região sertaneja em geral. 
“Explica a receita que uma lata (18 litros) de leite cru dá ¼ de coalhada escorrida que carece ½ lata de leite cru para ‘juntar’ e mais uma garrafa de manteiga (tamanho cerveja) para cozinhar – produzindo, essa ditas medidas, por volta de uns 2 ¹/² k de queijo de manteiga.” (FARIA, op. cit , p. 68)
A manteiga de garrafa ou manteiga da terra quando guardada em lugar fresco durava praticamente um ano. Ela pode ser também utilizada como tempero especial para o feijão verde, feijão de corda, farofa, com macaxeira, etc.. A borra da manteiga, resíduo que sobra após a manteiga apurada é deliciosa. Quando em grande quantidade, pode ser juntada e submetida a um tratamento para extrair o resto de manteiga que fica nela retida. Eu adorava comer a borra da manteiga com ou sem farinha.
As sobras de fabricação do queijo e/ou da manteiga poderiam ser empregadas como ração de engorda para os porcos.

PORCO
Além da carne de porco normalmente preparada, fazia-se também  a linguiça com ela bem temperada. Quem comeu a linguiça feita por Edite de Cícero Lopes pode dizer que sabe o que é linguiça boa. Essas linguiças processadas industrialmente são um lixo na frente das boas linguiças de processamento artesanal.
O toucinho do porco era guardado em potes mergulhado numa solução de vinagre, pimenta do reino, cominho, alho e sal. Também do toucinho vinha a banha utilizada na culinária rotineira e o delicioso torresmo que temperava o feijão, o arroz e ainda acompanhava outros pratos e a ração de viagem.
Do seu sangue pode ser feita uma das mais exóticas iguarias da mesa sertaneja: o famoso chouriço doce cuja receita passaremos na ocasião do post sobre receitas sertanejas. 

CAPRINOS E OVINOS
Geralmente consumidos cozidos ou assados também podem ser utilizados em pratos especiais dos quais vamos oferecer algumas receitas no post com essa finalidade.

LEGUMES E CEREAIS
O feijão era comido verde e/ou seco. O processo de debulha tanto poderia ser feito em mutirão, as famosas debulhas que falamos em post anterior,  ou a cacete quando o feijão é secado ao sol sobre esteiras, açoitado e peneirado em urupemas. A exposição ao sol permite a retirada do excesso de umidade. 
 
Processamento do feijão a cacete
Primordialmente, os legumes eram guardados em sacas de couro costuradas e dispostas sobre tábuas. Com o tempo, surgiram os silos e, ainda,  as antigas latas de querosene para pequenos estoques de legumes e cereais. 
Latas de querosene
Antes dos silos, os legumes eram guardados em sacas de couro dispostas sobre tábuas. O milho seco e/ou verde pode ser utilizado em vários pratos. Entre outros, citamos, cuscuz,  mungunzá,  canjica, pamonha e bolos. O angu era preparado à base de fubá de milho, cozido com água e sal, podendo ser acompanhado com leite ou caldo de peixe. ou de carne gorda. O milho também integra a ração de suínos e aves.
A cultura do arroz vem depois. Inicia com a construção dos açudes e o aproveitamento das vazantes onde também se plantava a batata doce, o jerimum, etc. No inicio, o descascamento do arroz era feito no pilão. 
Pilando arroz em dupla
FARINHA
A  farinha de mandioca é uma presença constante na alimentação do sertanejo. Ela combina com a carne, a rapadura, a banana, o café. Faz a farofa e o pirão. A sua produção envolvia muitas pessoas. A mandioca era raspada, ralada, espremida, peneirada e cozida. A farinhada produzia também o polvilho, a tapioca e o carimã.  Nesse processo, a responsabilidade das crianças era peneirar a mandioca ralada. 
Mão de obra feminina na farinhada
JERIMUM
As variedades cultivadas são o caboclo e de leite. Tanto podia ser comido sozinho, cozido no feijão ou na carne ou machucado com leite e açúcar. As sementes são guardadas em cabaças ou garrafas para serem utilizadas no próximo plantio. 
RAPADURA
A rapadura é consumida sozinha ou junto com feijão, queijo, batata e farinha. Adoça o café e a coalhada. Rica em ferro e outros minerais. Nem toda rapadura pode ser guardada. Apenas aquelas de qualidade especial. São conservadas arrumadas sobre tábuas afastadas das paredes em aposentos secos e arejados. É ração e lanche. Acompanha o sertanejo em suas andanças. As mais famosas rapaduras são produzidas no Cariri e comercializadas em várias regiões do Nordeste. 

HORÁRIOS DE REFEIÇÕES
As refeições distribuíam-se desde muito cedo intercalando uma dura jornada de trabalho. A rotina começava  às duas horas da manhã com as orações matinais. O trabalho começava as 4 horas e às 7 horas era servido o almoço (leite, coalhada, carne assada e farinha de mandioca). Ao meio dia servia-se o jantar (feijão com carne, pirão escaldado ou solto, corredor de boi gordo com rapadura do Cariri, um prato de caldo como sobremesa e, depois, chá e/ou café. Às sete horas da noite, na ceia, servia-se coalhada com nata, rapadura e farinha. Nos períodos de inverno servia-se, em dias alternados, durante o almoço o queijo de manteiga produzido em tigelas de barro, rapadura e farofa de cascão do próprio queijo. Outras variações sobre o regime alimentar são encontradas. Permanecem praticamente os mesmos horários intercalados ou não por horários de merenda. A base alimentar é a mesma embora apareçam outras opções de pratos. Entre outras, sopa de leite com pão cozido, tapioca, ovos cozidos, queijo e café.
Encerramos este post com a transcrição de um texto de Leonardo Mota como uma estirada folclórica tecendo loas a abundância do sertão e aos hábitos alimentares de um caboclo. (MOTA apud ADERALDO, 1962.  p. 174-175)
 “Seu Dr., de madrugadinha, no quebrar das barra, que os menino vão p’ro chiqueiro das criações, eu pego uma cuia de bom tamanho e bebo ela cheia de leite de cabra. Gosto tanto de leite de cabra, seu Dr.! Mas, sim: quando o dia já amanheceu que os menino estão tirando o leite das vaca, eu vou p’ro curral e bebo outra cuia de leite de gado. Aí, eu volto pra casa e ‘meus pecado’ (a esposa) já tem passado café e eu tomo a minha palangana de café com leite e faço meu mastigadozinho de tapioca com queijo. Gosto tanto de queijo, seu Dr., eu não me aparto de queijo. Adispois dêsse café gordo, eu ditrimino os laboro da fazenda inté por volta das 9 hora, que é quando se almoça. No almoço eu como minha carne cozida com meu pirão escaldado, como meu arroz de leite, minha tigela de caldo, como meu pire de doce de mamão. Doce se tem eu como, também se não tem, também eu não como. Mas, sim: a meio dia na quentura do sol, antes de dormir meu sono no alpendre, eu como minha merendazinha: como meu prato de quaiada com rapadura do Cariri e farinha da Serra Grande, como minha tora de queijo assado, tomo meu café com bolacha. Bolacha se tem eu como, também se não tem, também eu não como. Mas, sim, na janta, das 3 p’ras 4 hora, eu como meu feijão com carne seca e toicinho, bebo minha tigela de caldo, como meu leite com jirimun. Gosto tanto de jirimun, seu Dr., eu não me aparto do jirimun! Mas, sim, à boca da noite na hora da ceia”..,
BIBLIOGRAFIA
ADERALDO, Mozart Soriano. Velhas receitas da cozinha nordestina. Fortaleza. Revista do Instituto do Ceará. 1962. 63p. Disponível em: https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1962/1962-VelhasReceitasCozinhaNordestina.pdf
BARROSO, Gustavo. Terra do sol: natureza e costumes do Norte.  Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. 1962.223p.
FARIA, Oswaldo Lamartine de. Sertões do Seridó. Brasília. 1980.
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836 - 1841. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo/Livraria Itatiaia Editora Ltda. 1975.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife. Governo do Estado de Pernambuco/Secretaria de Educação e Cultura/Departamento de Cultura. 1978. 2a. edição.
PONTES, Lana Mary Veloso; ALBUQUERQUER, Emanuel Lindemberg Silva; MEDEIROS,
STUDART, Guilherme. Notas para a História do Ceará. Brasília. Senado Federal. 2004 (Edições do Senado Federal v. 29)
VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780 – 1850). Fortaleza: Edições Demócrito Roca; Hucitec. 2004. 320p.
MLUIZA
RECIFE
17.06.2018

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