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MLUIZA |
Meu busão é um canteiro de vidas. A minha linha tem parada na Praça do Derby por onde circulam muitas outras linhas. Neste ponto concentram-se vários populares que entram nos ônibus para pedir dinheiro. Percebo que há um acordo tácito para o seu rodízio. Se alguém está por lá, outro não entra. Cada um desfia seu enredo, oferece seu produto e sempre pinta uns trocados. Tudo se oferece nesse comercio volante de quinquilharias. Outro dia, eu comprei por R$1,00 uma capinha para documentos que na padaria custa R$ 7,00. Antecipando-se a essa volta da pandemia, tinha um oferecendo álcool para borrifar as mãos de passageiros. Existem os poetas, os cantores, os músicos, os artistas circenses, entre outros. O roteiro é básico: um discurso introdutório seguido pela arte e/ou pela súplica.
Certa vez apareceu um jovem azarado que teve pena de uma mulher, segundo ele, ‘craqueira’ que tinha uma filha. Resultado: apaixonou-se por ela e pela menina. Ela também se apaixonou, mas por uma mulher. Largou com ele a pequena Sofia, razão pela qual ele pedia dinheiro para comprar leite para a garota. Daí pra frente vale tudo para sensibilizar os passageiros.
Minha vizinha de poltrona comenta comigo.
- Eu detesto gente que gosta de murmurar. Deus não suporta gente que murmura. Minha vizinha murmura demais. Ela é manicure, recebe pensão, tem uma filha que vive de short pela rua, troca direto suas unhas de gel e está sempre pendurada no celular. Ela fica contando miséria para suas clientes que ficam com pena e sempre reforçam a gorjeta. Eu já ajudei muito, mas não ajudo mais porque me sinto explorada. Já dei muito pacote de feijão. Agora, nem isso!
Como a linha é longa eu resolvi atiçar o papo pra ver onde ia dar.
- Tem gente assim, digo-lhe.
Ela pegou a deixa e foi avante.
- Eu, por exemplo. Tenho minha aposentadoria e meu plano de saúde. Gosto de andar arrumada e não dou trabalho a ninguém. Tenho o maior cuidado com meu cabelo. A senhora está vendo, não é? Tenho uma filha que mora em Paulista e nunca me visita. Nem me liga. Aliás, só me liga pra pedir as coisas. Eu nunca vejo minha neta. O menino mora no Cabo, tá pras bandas de lá e também não me dá atenção. Eu me resolvo sem eles porque acho os dois muito mal agradecidos.
- Onde você mora, pergunto-lhe.
- Em Monsenhor Fabrício, responde.
Pondero.
- É meio longe, mas não justifica o descaso, digo-lhe acenando com a minha solidariedade de mãe.
- Eu estou dizendo aqui só pra senhora porque - como eu já lhe disse- sou uma pessoa que não murmura. Deus me livre de murmurar.
Pelos termos que usa pressinto que é evangélica. Desço no meu ponto desejando-lhe boa sorte. Na minha pobreza vocabular eu nunca havia pensado na palavra murmurar com o sentido de reclamar. Isso me deixa cada vez mais apaixonada pela plasticidade da palavra em seus múltiplos significados. Como diz o professor de inglês da minha filha, ‘o sinônimo é uma ilusão”. Concordo. Entre o objeto e o olhar existe um sentimento que guia a percepção. É nesse hiato que se expressa o desafio de encontrar a palavra correta que revela o prodígio da compreensão e do diálogo.
MLUIZA
Recife, 08.11.2022
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