AKI LEMBRANU: A PEDAGOGIA DA OBEDIÊNCIA

MLUIZA
 
A pedagogia de mamãe sempre foi absolutamente objetiva, do tipo escreveu, não leu, o pau comeu. Os seus métodos severos incluíam advertências tenebrosas que projetavam o resultado de qualquer desvio fora do padrão esperado. Eu já conhecia as etapas do processo. Para prevenir, começava com ameaças. Depois, entrávamos nas vias de fato. Era a educação pelo não. De antemão, eu tinha que saber a lista do que não podia fazer. Não pode e pronto. O que podia fazer eu não lembro.
-Se você fizer.... (essa pausa era providencial pois que conferia expectativa ao anteclímax do desfecho)... vai se arrepender da hora em que nasceu, era o mote da ameaça.
Uma vez feita a transgressão, a promessa era cumprida. Um elenco de alternativas alternava-se entre o castigo inibidor de pequenos prazeres, uns bolos com uma escova de limpar roupas – essa era a que mais doía – e uma meia dúzia de palmadas geralmente com a chinela que, na época, era de sola. Levei tanto bolo que, às vezes, penso que é por conta disso que eu não gosto de bater palmas. Minha forma preferencial de aplaudir é reconhecer o mérito do feito. Palmas não é comigo. Se eu tivesse anotado as palmadas que levei talvez estivesse no guiness.
O nosso cardápio doméstico até que era restrito considerando outros métodos disponíveis tais como o puxão de orelhas, o cocorote, a corda, o cipó, a cadeira suspensa no armador, entre outros que não lembro no momento. . Mas, ‘peia’ nunca faltou lá em casa. Mamãe nunca foi uma foi uma mulher de sutilezas.
Eu sempre tive afã pelo desafio de quebrar regras. A minha estratégia de enfrentamento era não mentir, não negar e encarar. Apanhava olhando pra ela. Chorava, mas encarava.
- Baixe a cabeça, ordenava.
Eu não baixava. Mesmo sem ter consciência eu percebia o ato de encarar como uma forma de dizer não à submissão. Apanhava mais por conta disso do que pelo feito, mas não arredava um passo.
Quando chegaram as havaianas, a coisa ficou mais frouxa. Apanhar de havaiana era uma desmoralização. Não doía. Mamãe não aderiu à novidade. Continuou adepta da escova e da sandália de sola.
Tínhamos um vizinho com uma família numerosa que aplicava um método preventivo infalível. Quando alguém fazia uma transgressão, todas as crianças apanhavam. O que errou, como punição, e os demais para aprender de antemão que não poderiam fazer o mesmo.
Uma amiga me contou que levou uma surra porque teve a ousadia de se esconder embaixo da cama para ler o livro que a irmã mais velha estava lendo. Ela lembra até o nome. Era ‘Manon Lescaut’, do Abade Prévost, um romance do século XVIII. Revistas em quadrinhos eram extremamente proibidas lá em casa. Era gibi. Gibi não pode. Não existia a explicação, o convencimento, a compreensão. Não pode. Fim. A censura para ser bem assimilada começa em casa.
Sou de uma geração educada pela obediência cega à experiência alheia. Hoje, entendo porque tanta gente perdeu o bonde e ficou aprisionada à submissão que acabou expressando-se de várias formas nas suas vidas.
Obedecer, acostumar-se tem preço. E pode ser muito alto. Obedecer regras, respeitar limites é fundamental para a vida em sociedade. Obedecer cegamente é abrir mão da possibilidade de mudança de rumos.
Eu faço parte dos que resolveram quebrar a corrente e pagar pra ver. Até hoje não me arrependi da hora em que nasci.
MLUIZA
Recife, 06.10.2021

 

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