MLUIZA |
Dona Quidinha, senhorinha tranquila, cumpria os rituais e encarava sem sobressaltos a habitual vidinha ‘marromeno’. Morava só e, de noite, Marinete, empregada da vizinha, vinha dormir com ela para lhe fazer companhia. Alta, magra, sem peito nem bunda, Marinete era fã de babados para disfarçar os apetrechos físicos que o corpo lhe negou. Saia, vestido ou blusa tinha que ter aquele babado providencial.
Entre os babados da fogosa Marinete e o temperamento tranquilo e recatado de Dona Quidinha, o tempo passava sem grandes sobressaltos até que um dia aparece João, um tocador de banjo vindo das bandas de Juazeiro que animava as quermesses das pequenas cidades da região. Onde tinha festa, lá se ia o banjista fazer suas apresentações. Tanto tocava como bebia. Solitária, carente, reprimida, sensibilizada pela música, Dona Quidinha não resistiu. No começo, um olhar furtivo acelerava o tum tum do coração, mas ainda dava para segurar a emoção e conservar os princípios morais. A água entornou quando o cérebro decidiu que esse problema era com ele. Aí, a conversa tomou outro rumo. Entrou em ação a circuitaria cerebral que comanda os sentimentos. Sem Dona Quitinha dar-se conta o seu cérebro começou a operar a revolução química da paixão. Ocitocina, vasopressina, dopamina, serotonina, cortisol e por aí vai o coquetel de estresse, obsessão, compulsão. Cadê fome, cadê sono, cadê paz? Nesse nível, qualquer um já perdeu a guerra. Nem Jesus na causa. É apagar a luz, fechar a porta e deixar acontecer. O clima fica por conta da música de Alcione, ‘tanto faz, eu quero é mais amor’.
Mesmo sem conhecer as presepadas químicas do cérebro e muito menos o que diz Oscar Wilde, Dona Quidinha captou deste a sua mensagem: “Resisto a tudo, menos à tentação”. Pronto, lá se foi o recato! Adeus, juízo.
Quermesse é quermesse, paixão é paixão e como tudo é festa vamos juntar as duas coisas e musicalizar esse coração ao som do banjo do amado que fica ainda melhor. O futuro a Deus pertence.
Vida que segue. Dona Quidinha, o tocador de banjo, nas temporadas de festas, e Marinete e seus babados. Até que, algum tempo depois, num dia de quermesse, Marinete resolveu vestir o seu novo vestido vermelho feito exclusivamente para a ocasião e, naturalmente, pleno de babados.
Chegando em casa, o banjista, embriagado, cismou com o vestido e começou a teima. Primeiro, ele implicou que o vestido era encarnado e não vermelho. Marinete não aguentou a desfeita e começou a desavença dentro de casa. Ele achou pouco e criticou os babados:
- Babado, não. Babado é babo. Babadoré!
Ai, não prestou. Foi demais da conta. Dona Quidinha, estupefata, entre a companheira e o banjista, não conseguiu controlar a guerra que terminou com Marinete pulando o muro para a casa da vizinha e rasgando o vestido vermelho. Ou seria encarnado? Jurou nunca mais pisar na casa de Dona Quidinha que precisou arrumar outra companheira para lhe fazer companhia nas longas noites que ainda teria que atravessar.
Com o tempo, o banjista sumiu das quermesses e da vida de Dona Quidinha.
(Essa narrativa é real. Eu alterei nome de pessoas, cidade, etc. para evitar identificação. Aconteceu entre os anos 40 e início dos anos 50. A casa vizinha de Dona Quidinha era a residência da avó de uma amiga minha, numa cidade do interior do Ceará, da qual não posso dizer o nome ´para não identificar os personagens. Domingo passado, conversando com minha amiga recordamos essa passagem que eu já sabia desde os anos 60 quando ela me contou na época em que eu estudava no Crato. Resolvi compartilhar com vocês para matar a tarde de um sábado covidiano quando o tempo parece passar mais devagar do que o relógio.)
MLUIZA
Recife, 19.12.2020
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