PERFIL: VIVALDO ALVES DE OLIVEIRA (PARTE I)

MLUIZA
Aos poucos – devagar e sempre - vamos compondo a nossa série sobre personalidades que tiveram participação expressiva na vida social e política de Ipaumirim desde os seus primórdios. O limite da nossa pesquisa é o ano de 1970.  Portanto, as pessoas que pretendemos ressaltar são aquelas que tiveram participação efetiva até este período embora elas ultrapassem esta época. Os perfis que buscamos construir  devem seguir a trajetória pessoal de cada personagem.  A sua seleção e composição não considera relações de parentesco, amizade ou afinidade política. Ela se justifica pela  participação do indivíduo na vida da cidade durante o período da pesquisa e nunca simplesmente pelo fato de que, em algum momento, tenha portado diplomas políticos, alcançado projeção econômica ou realizado feitos individuais que não tenham representatividade para a vida da comunidade. O foco será  o coletivo e as questões de interesse público serão sempre soberanas.  Portanto, o nosso trabalho tem procurado não alimentar a fogueira das vaidades, mas sobretudo conseguir - através do testemunho e da participação destas pessoas - o resgate de fatos e situações importantes que construíram a vida do município na época pesquisada.  Assim, neste momento, apresentamos o perfil de Vivaldo Alves de Oliveira que será desdobrado em quatro etapas seguindo um roteiro cronológico distribuído em quatro semanas seguidas. Agradeço a sua paciência e disposição em colaborar durante todo o tempo que temos trabalhado na composição do seu perfil.
Vale salientar que o resgate da trajetória de Ipaumirim seria impossível sem a generosidade das fontes orais que ao longo do tempo nos ajudam a conduzir as tramas deste processo. Sem eles este trabalho não seria possível. Nesta etapa, quero agradecer a colaboração de Federalina Quaresma que me tirou algumas dúvidas na localização de alguns sítios suprindo a minha dificuldade de percorrer e identificar a distribuição espacial de algumas propriedades.
MLUIZA
VIVALDO ALVES DE OLIVEIRA
Sou filho de João Alves de Oliveira e Maria Antônia Lucena. A família do meu pai chegou até o município de Umari vindo da região de Triunfo, na Paraíba. O meu avô paterno, Joaquim Alves, instalou-se no Sítio Santa Bárbara onde adquiriu parte da área deste sítio. Meu pai nasceu no ano de 1896. Na relação dos proprietários rurais do município de Umari registrada no Recenseamento do Brasil realizado em 1920 pela Directoria Geral de Estatística do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, consta o nome do meu avô, Joaquim Alves, como um dos proprietários da Santa Bárbara. Neste mesmo documento, consta o nome do meu pai como um dos proprietários do Sítio Carnaúba.
A família da minha mãe também veio da Paraíba pela região onde se localiza atualmente o município de Santa Helena e, aqui, se instalou no Sítio São Jerônimo. O meu avô materno morreu de um colapso quando trabalhava em uma broca e deixou grávida  sua jovem esposa que logo depois  faleceu precocemente. Com o falecimento da minha avó,  minha mãe, ainda muito pequena, passou a ser criada por uma tia que também residia naquela localidade.
Para dirimir dúvidas de que teria havido uma migração destas famílias de Umari para Ipaumirim vale esclarecer que, nesta época, a área que hoje compõe o município de Ipaumirim, antes Alagoinha, assim como Baixio, era território de Umari de forma que não houve uma migração intermunicipal  de Umari para Alagoinha desde que todo este território era Umari. Muito tempo depois, com o desmembramento dos municípios é que parte deste território iria compor o município de Ipaumirim.
JOÃO ALVES E MARIA ANTONIA DE LUCENA
Meu pai era um homem alto, alvo e de olhos azuis. De temperamento tranquilo e discreto, começou a vida trabalhando na roça. Era um sujeito regrado e, nas suas condições, financeiramente equilibrado. Semianalfabeto, não bebia nem fumava. Vaidoso, não abria mão do seu chapéu de massa que a cada ano trocava por um novo. Não me consta que fosse católico praticante, mas nunca se separou do rosário que minha mãe lhe trouxe de uma das suas viagens ao Juazeiro. Não era ríspido com os filhos mas lhes impunha obediência e respeito.
Minha mãe nasceu em 08.12.1901. Era analfabeta. Mulher determinada e de temperamento forte, tinha firmeza nos seus propósitos. A nossa educação foi pautada pela obediência e respeito aos pais. Éramos poupados de eventuais dissabores entre ela e meu pai. Mamãe mantinha a disciplina da casa e não se acanhava de castigar os filhos quando achasse necessário. Ainda assim era tranquila, agregadora e exercia uma liderança firme no núcleo familiar.
Como as mulheres do seu tempo, cuidava da família e das atividades domésticas. Cozinhava, lavava, passava e costurava as nossas roupas. Preocupada com a  saúde da família  não descuidava da nossa vermifugação com os métodos disponíveis na época. Semanalmente, levava os filhos  para a feira de Alagoinha. Lembro que ela gostava de comprar inhame e uns bichinhos de açúcar caramelado fabricados artesanalmente. Zelosa pela união da família, não queria os filhos na política com receio de um possível desentendimento familiar por questões partidárias. Dizia que numa família as brigas motivadas por política e inventário têm apenas o dia para começar mas nunca o dia de acabar. Trabalhadora, ajudava a cuidar dos bens da família.
A renda familiar era oriunda do pequeno criatório e da produção agrícola. Minha mãe cuidava do curral de ovelhas com a colaboração dos filhos mais novos. Todo fim de tarde ficava na porteira do curral de ovelhas observando o rebanho que chegava do pasto. Sabia cuidar dos animais estropiados improvisando remédios e utilizando práticas populares na época. Uma tala feita com pedaços de madeira para proteger uma pata, emplastros de matruz para curar dores e inflamações eram providenciais. Suturava feridas com uma agulha grossa e as tratava cuidadosamente com pó de café.  A galinha, os ovos e os derivados de leite (queijo, manteiga, nata) eram a fonte de sua renda pessoal. Do seu jeito, procurava ser independente. O casal gostava de fazer amizades e costumava . ser convidado para apadrinhar batismos e casamentos.
Somos sete irmãos: Francisca, José, Vicência, Antônio, Pedro, Vicente e eu. Francisca faleceu muito jovem vítima da epidemia de malária que espalhou-se pelo Ceará.  Nosso irmão, José Alves, acometido da mesma enfermidade conseguiu escapar.  O mosquito transmissor da malária. Anopheles gambiae,   chegou à região Nordeste por volta de 1930 por meio de navios franceses que faziam o comércio marítimo entre Europa, Brasil e Dacar e atracavam no porto do Rio Grande do Norte. Por volta de 1937, este mosquito já se havia disseminado pela região do baixo Jaguaribe chegando até a região de Lavras da Mangabeira onde se localizava Alagoinha. O tratamento era feito com comprimidos à base de quina distribuídos com a população doente. Os enfermos utilizavam o chá de quina-quina para auxiliar no tratamento.  Francisca faleceu deixando uma filha bem pequena,  Francinete, que foi criada pelos meus pais. Pedro migrou para o sul do país em 1954, voltou uma ou duas vezes ao Ceará mas acabou estabelecendo-se em São Paulo onde reside com a família. Os demais filhos, Vicência, José, Antônio, Vicente e eu ficamos em Ipaumirim. Posteriormente, Vicência mudou-se com a família para Iguatu e eu, filho mais novo, tive que migrar para estudar e trabalhar em outras cidades  do Ceará.
Nasci em 27.09.1941 no Sitio Carnaubinha. Meu pai registrou-me um mês depois. Não sei se por um equívoco dele próprio ou do oficial do cartório de registro civil consta no meu registro de nascimento como nascido em 26.08.1941.
Moramos a vida inteira no sítio onde nasci. Nossa casa era uma construção rústica de tijolo e telha. Com o tempo foi sendo melhorada tendo as paredes rebocadas e o piso cimentado. Tinha um alpendre, uma sala de visitas, três quartos, uma sala de jantar e uma cozinha. Apenas o quarto do casal tinha cama, nos demais dormíamos em rede. As instalações sanitárias vieram muito depois. No terreiro de casa tínhamos um forno de alvenaria para fazer bolo  quando a família se reunia por ocasião das festas juninas e  no natal.
A rotina doméstica contava com a ajuda providencial de Vicência, moça que veio do Sítio São Pedro e ficou conosco até casar. Sua família era amiga da minha mãe e costumava passar lá em casa para tomar um café quando vinha da feira dominical em Alagoinha. Os parentes de Vicência trouxeram-na para morar conosco.
A família era praticamente abastecida pelos produtos do nosso próprio sítio. Plantávamos arroz, feijão e milho. Durante um tempo plantamos batata doce. O pão era comprado na porta de casa quando o vendedor passava com seu balaio de pães oferecendo-os aos moradores daquela área. O arroz plantado no sítio era pilado em casa. O milho também processado em casa dava origem ao cuscuz, angu, broa, bolo chapéu de couro bem como as comidas típicas do período junino: bolo de milho, canjica e pamonha. Perto da nossa residência, minha mãe tinha um canteiro suspenso feito com varas e sustentando por forquilhas onde plantava coentro, cebolinha e, ao lado, um pé de pimenta. Tínhamos ainda manga, caju, limão e cajarana. Posteriormente, meu pai mandou fazer um cacimbão e passamos a plantar coco, mamão e banana. Antes, comprávamos bananas vindas de Aurora. Junto do cacimbão,  meus irmãos construíram um banheiro pois que até então não tínhamos essa facilidade. Inicialmente, a água era retirada manualmente utilizando uma roldana. Depois, foi instalada uma bomba que muito facilitou o trabalho.
A luta do leite era madrugadora. Minha mãe o fervia três vezes ao dia para retirar uma nata espessa que seria transformada em manteiga.  Parte do leite fervido era posto para coalhar e a seguir escorrido num saco de algodãozinho para produzir a coalhada escorrida. 
A nossa rotina doméstica era trabalhosa e todos participavam realizando alguma atividade. Acordávamos muito cedo para ordenhar as vacas. Além de ovinos, caprinos e porcos, criávamos ainda galinhas e capotes que  atendiam as demandas do consumo doméstico. Quando abatíamos um animal de maior porte não havia como conservar a carne. A pequena comunidade desenvolveu um método especial de economia solidária compartilhando entre si a carne do animal abatido. Cada vez que um vizinho abatia um animal, os demais recebiam a sua parte. Nessa área, existiam cinco casas onde moravam as famílias de Seu Casé, Severino Dudu, Dona Moça,  Dona Joaninha Leandro e a nossa. Embora próximas, as casas eram interligadas por veredas traçadas no meio do mato.
Na hora das refeições tínhamos que estar todos à mesa. No café da manhã era servido leite, queijo, nata, manteiga, café, cuscuz feito com o milho posto de molho no dia anterior e depois moído para fazer a farinha que dava origem ao cuscuz, ao angu, ao bolo e outras iguarias da mesa sertaneja.  
Na divisão de tarefas, os filhos menores ajudavam a mãe moendo o milho e trazendo água das cacimbas que ficavam no leito do Riacho Pendência para abastecer os potes. Este riacho nasce na Serra da Areia, distrito de Felizardo, na fronteira com o município de Aurora e finaliza no Baixio quando encontra outros riachos que vão desaguar no Rio Salgado, em Lavras da Mangabeira. Para captar a água pura era necessário  esgotar diariamente a cacimba para fazer brotar a água límpida que trazíamos para abastecer a casa. Para filtrar a água utilizava-se um coador feito de algodãozinho e a seguir a boca do pote era protegida por uma touca do mesmo tecido para preservá-la de possíveis impurezas.
Os filhos maiores ficavam sob a administração do meu pai cuidando do gado e da roça. Com tranquilidade e ponderação, ele determinava as tarefas atribuídas a cada um.
Já não alcancei papai trabalhando na roça. Ele tinha adquirido uma mercearia onde passou a trabalhar e a lida da roça ficou sob a responsabilidade dos filhos mais velhos por ele orientados. Cedo da manhã, tomava seu café, botava o chapéu e saía para a mercearia localizada nas imediações do Cemitério Santa Terezinha, em Ipaumirim. Às 10.30h voltava para almoçar em casa. O nosso almoço era servido pontualmente às 11 horas e às 12.30h ele retornava ao trabalho. No almoço, eram servidos feijão, carne, arroz, torresmo, farofa, baião de dois que eram a base da alimentação do sertanejo. À tardinha, quando voltava para casa meu pai botava as preguiçosas no alpendre onde depois do jantar ele e mamãe sentavam para conversar e eventualmente receber alguma visita. Nós ficávamos ali por perto. 
Terraço da casa no Sítio Carnaubinha. João Alves, Antonia Lucena, Vicente e Francinete.
Todos os anos, comemorávamos as festas juninas que eram uma tradição tanto no povoado quanto nos sítios. Acendiam-se fogueiras, no São João e no São Pedro, diante de cada residência. Em nossa casa, a festa praticamente começava de manhã quando os filhos chegavam com suas famílias para preparar a comida da noite. As mulheres passavam o dia preparando as iguarias  num movimento constante de ir e vir entre o fogão na cozinha e o forno instalado no terreiro.   O que sobrava no fim da festa era repartido entre meus irmãos casados e suas famílias.  Meu pai adorava festejar o São João. Ele mesmo fazia cuidadosamente um balão de papel de seda para soltar durante a festa. Defronte a casa, ele acendia a nossa fogueira e soltava o balão. No dia 24, bem cedinho, disparava seu bacamarte carregado com pólvora e bucha de corda. Ele também sabia fazer traques e bombas caseiras para soltarmos naquela  ocasião.
Reuníamos a família também no natal. Meus irmãos chegavam cedo com as suas famílias para passar o dia lá em casa fazendo comida. A noite de natal era comemorada em Ipaumirim. Íamos todos juntos para a cidade. Noite animada, comercio aberto, muita animação para esperar a missa do galo. As pessoas vinham dos sítios, a cidade era cheia de gente e a igreja ficava lotada. Apenas os cabarés celebravam a data com festas dançantes.
Além das festas juninas, outros momentos comemorativos faziam a vida social na zona rural. As debulhas eram um momento especial nas comunidades rurais. Representavam solidariedade, integração e fartura. A mecanização do processo de descaroçamento do feijão acabou com as debulhas. A singeleza das novenas e renovações - principalmente do Coração de Jesus -  na zona rural se projetava para além do sentido religioso. A motivação cristã transmutava-se sem cerimônia numa grande festa popular. Esquecia-se o santo e valia o encontro, as brincadeiras, os namoros e muita diversão.  Também eram muito apreciadas as festas de casamento. Finalizados os rituais permeados de emoção, a motivação maior era a comilança e a festa. 
Educar os filhos era praticamente inacessível para a maioria dos habitantes daquela localidade principalmente na zona rural. Os meus irmãos mais velhos foram alfabetizados por professores particulares que davam aulas às crianças em salas de aula improvisadas nas casas das pessoas. Aprendia-se basicamente a ler, escrever e a fazer duas operações matemáticas: adição e subtração. Vicente, Francinete e eu fomos alfabetizados por um professor particular que dava aulas na sala da casa de Vicente Benedito, no Sítio Baixio do Meio, perto da nossa casa. Eu fui o único da família a frequentar uma escola formal. 
Aos sete anos comecei a estudar no Educandário |Municipal de Ipaumirim que funcionava no mesmo local onde atualmente funciona a Escola Municipal Jarismar Gonçalves situada na Avenida Dr. Francisco Vasconcelos de Arruda. Nesta escola, a minha primeira professora foi Gizeldina Macedo.
VIVALDO AOS SETE ANOS COM A FARDA DO EDUCANDÁRIO MUNICIPAL DE IPAUMIRIM
Eu ia para a escola de manhã e quando voltava ia brincar com meus amigos na volta de casa. Éramos poucas crianças. Jogávamos pião, empinávamos pipa, peteca, bola, caçávamos com baladeira, havia muito mato e muita caça disponível. Era divertido brincar de cabiçulinha jogado com bola de gude. Com um graveto traçávamos uma linha na terra. A três passos adiante cavava-se uma cova rasa formando uma série de covinhas que guardavam entre si a mesma distância.    O jogo era realizado com as crianças tentando colocar a cabiçulinha - também conhecida como bila ou bola de gude - nas covas.
Como nossa família era católica, eu fiz minha primeira comunhão  em 1948, mesmo ano em que comecei a estudar no educandário.

FOTO DA PRIMEIRA COMUNHÃO AO LADO DOS PAIS
Terminei o curso primário aos dezesseis anos no Grupo Escolar Dom Francisco de Assis Pires no ano de 1957. Minha madrinha de formatura foi Odete Freitas. O prefeito Oswaldo Ademar Barbosa foi o patrono da nossa turma e Jáder Nogueira Santana foi o paraninfo. 
ODETE FREITAS
CAPA DO CONVITE DE FORMATURA
RELAÇÃO DOS FORMANDOS
A partir daí, minha vida toma outro rumo sem entretanto desligar-me das minhas origens. Muitos desafios à frente e muita luta para conquistar novos espaços e seguir adiante.
MLUIZA
RECIFE, 13.07.2020.                                                     

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