ALAGOINHA DOS ANOS 20 E 30

MLUIZA
A curiosidade saudável sempre me instigou. Procurar pelo prazer de procurar e não pelo de encontrar, como diz Jorge Luiz Borges. Os anos de universidade me proporcionaram o aperfeiçoamento e a disposição para a busca. Treinaram minha paciência e me mostraram que mudanças de rotas podem ser uma abertura para novos caminhos. Aprendi a não temer as fontes, não ter em relação a elas preconceitos descabidos e a consulta-las sempre na condição de aprendiz. E como “quem procura, acha”, estou sempre buscando, aqui e ali, alguma luz, algum caminho, alguma nova perspectiva a partir da qual eu possa ir adiante nos meus propósitos. Foi neste percurso que encontrei este livro de Figueiredo Filho que fala de Alagoinha nos anos vinte e trinta do século passado. O texto traz informações fundamentais que dão conta da pequena vila. Para ser absolutamente sincera, até este momento nenhum texto pesquisado por mim oferece informações sobre este tempo tendo como foco a vila de Alagoinha. Há exatamente onze anos eu ando mexendo com este tema, ainda que de forma assistemática e sempre submetido às minhas outras demandas profissionais desde que comecei - sem pretensões de nenhuma natureza -  o meu antigo blog alagoinha.ipaumirim. Eu não tenho pressa nem prazo. Vou aqui compartilhando com vocês os meus achados. Resolvi transcrever o texto excluindo alguns trechos deste relato autobiográfico que não estão diretamente relacionados com o nosso propósito.

MLUIZA

02.11.2018
 
José de Figueiredo Filho


BOTICÁRIO DE ALDEIA
(J. de Figueiredo Filho)

“Depois de servir três anos como inspetor, fui demitido do cargo, sem apelo nem agravo. Cumprira escrupulosamente o meu dever. Tinha até mais gosto pela inspetoria do que pela farmácia. Mas cometera a grande falta aos olhos do então governante, o jurista Dr. Matos Peixoto. O partido do meu pai perdera as eleições em Crato. O novo inspetor de ensino tinha que sair da agremiação vencedora.
Senti-me desamparo. Lembrei-me de realizar meu velho sonho de morar no Sul. Lá poderia me dar melhor do que no Ceará. Fui até S. Paulo e voltei certo de ir tomar conta da farmácia do meu tio em Itararé. Minha viagem com a família ficou marcada para quando o Paulo se transportasse para a capital paulista. Naquela época já tinha uma filhinha e Zuleica estava grávida do segundo filho.
Mas eu não podia ficar parado. A família começava a crescer. Precisava agir. A farmácia do meu pai, como sempre, não chegava para nós dois. Só com outro ganho, como o caso de minha colocação na inspetoria de ensino.
Lembrei-me de instalar-me provisoriamente em Alagoinha. Tinha fama de lugar próspero. Boas plantações de algodão. Ali residia outro tio meu, o José Viana. A localidade fica quase nas fronteiras da Paraíba. Pertencia ao mu8nicípio de Lavras. Primeiramente, visitei-a, para conhecer suas possibilidades. Encravada em plena zona algodoeira. Girava seu comércio em torno das baixas e altas do ouro branco. Alagoinha ficava quase no meio da estrada de rodagem entre Cajazeiras e Lavras. Tive longo contato com a população. Ótima impressão. Gente muito boa e acolhedora. Embora pobre, meu tio fechava a localidade na mão. Havia ali farmacêutico prático estabelecido. Seus negócios, porém, não corriam bem. Estabelecimento mal sortido e proprietário sem ligar muito ao serviço. Nos pontos onde não há médico, o farmacêutico é forçado a substituí-lo. Tem que se munir do indispensável Chernoviz, de terapêutica e de formulários diversos. 
O Formulário Chernoviz era a bíblia de todo farmacêutico. Nele pode-se ler sobre o aerômetro de Baumé, sobre as águas destiladas, os compostos químicos, a terapêutica em geral.
No dia que cheguei para a visita de observação, chamou-me o escrivão da coletoria, sr. Barrinho (José Ferreira Barros) para ver seu filhinho, fortemente atacado de gastroenterite. Passei-lhe poção, fermento lácteo e ensinei à mãe do garoto regime adequado ao caso.
Arranjei ponto comercial na principal praça. Voltei ao Crato em busca de medicamentos e de minha família, compreendendo, então, Zuleica e Eneida, ainda de braços.
Ao voltar a Alagoinha para instalar-me, encontrei boa propaganda de minha competência. Parecia entrar logo com o pé direito. O filho de Barrinho melhorou de repente, com o regime e a medicação que indicara. Não ia se repetir ali o caso de Novo-Exu. Aquela cura foi a chave que me abriu as portas da confiança da população alagoinhense. No mais curto espaço de tempo, arrumei medicamentos nas prateleiras da antiga bodega e iniciei a luta de boticário de aldeia.
No domingo, por ocasião da primeira feira que assistia na localidade, tive contato com o sertanejo lavrador de algodão. Melhores condições financeiras do que o trabalhador rural caririense. Qualquer beiradeiro de alpercata e chapéu de palha de carnaúba metia mão no bolso e desamarrava do lenço notas de 50$, 100$ e até 500$000.
Cheguei em Alagoinha bancando paletó, gravatas e sapatos. Em pouco tempo o meio me absorveu por completo. Como todos os negociantes locais, passei a usar blusa de pijama, calças de brim e chinela de couro entrançado. A diversão do lugar era a indispensável roda da calçada. Na farmácia, nas lojas e mercearias. À noite as reuniões se transferiam para as casas de família. Tornei-me logo perito em assuntos locais. Evitava, no entanto, palestras que viessem a ferir a vida alheia. Até criei certo gosto pela política. Dei-me muito bem com a gente sertaneja. Demonstrava inteira confiança em mim. No tratamento de suas doenças seguia religiosamente os meus conselhos. Nos casos mais complicados eu os recomendava ao Dr. Otacílio Jurema, ou Dr. Celso Matos, em Cajazeiras. 
Dr. Otacílio Jurema
Dr. Celso Matos. Fonte: blog O último dos moicanos
Fatos interessantes se sucederam em minha vida de mezinheiro de aldeia. Em dia de feira, um beiradeiro me abordou. Pediu-me com insistência e confiança que lhe indicasse remédio eficaz para terrível erupção que atacava todo o seu corpo e muito o incomodava.
-Oi, seu Doutô, numa mais pude drumi sossegado pro mode dessa danada. Desabotoou a camisa mostrando-me o peito nu.
-Dê um jeitinho nisso que eu pago bem e fico muito agradecido.
Não sei se exteriorizei minha repugnância. Parecia sua pele um misto de couro de cururu e escama de peixe. Nem sequer tentei apalpar aquela coisa feia e rugosa.  Causava-me mal-estar só em vê-la. Contive-me para não quebrar a minha pose de doutor. Com o olhar percorri as prateleiras da bodega transformada em farmácia.  Finalmente deparei-me com velho vidro de carbonato de lítio efervesceste. Rótulo já esmaecido pelo tempo. Enchi uma lata de pomada Helmerich. Entreguei os dois remédios ao doente, portador de tão repugnante dermatose. Aconselhei-lhe resguardo. Nos sertões é indispensável a recomendação de certa dieta se não ninguém acredita no efeito do medicamento. E no caso de fracasso corre este por conta do “resguardo quebrado”. Pagou-me o preço módico que lhe cobrei. 
Na outra feira o sertanejo me apareceu todo sorridente. Abriu a camisa e mostrou-me o peito todo sarado. Parecia nunca ter tido erupção. A cura me surpreendeu. Acertei por acaso. Foi um bambo. Minha fama naturalmente aumentou com o sucesso. Chamavam-me, às vezes, par atender doentes fora. Em fazendas distantes de uma a três léguas. Cobrava modicamente a viagem Cr$50,00 ou Cr$100,00.
Certo dia apareceu na farmácia um beiradeiro trazendo possante cavalo. Chamou-me para ver sua senhora com parto bem difícil. Residia a duas léguas da vila. A primeira vez que banquei o parteiro e sem qualquer prática. Apenas sabia teoricamente o que os livros ensinavam. Mas não havia outro caminho.
Nenhum médico na localidade. Quem não tem cão caça com gato. O farmacêutico forçosamente tem que bancar o esculápio se não quer passar por incompetente. De nascimento assistira até então, como mero espectador, o de minha filha. Montei a cavalo confiado na Providência. Conduzi a seringa e injeções de urgência. Encontrei a parturiente assistida por uma dessas comadres incompetentes do interior. Verdadeiras fazedoras de anjos inconscientes. Mau cheiro de alho cru contaminava o ambiente. Quarto escuro. A velha parteira, fumando cachimbo, colocara grande tigela de louça no ventre da pobre mulher. A infeliz gemia e recorria-se a todos os santos. Apliquei-lhe algumas injeções. Poucos minutos depois, vinha ao mundo mais um habitante naquele meio de desconforto, entre cheiro de alho e fumaça de fumo de baixo preço. Todos ficaram muito admirados do meu sucesso. Muito mais admirado fiquei eu. Batizei a criança que parecia meio asfixiada.
Aquele chamado não marcou vitória para mim. Foi o início de outro fracasso. Quando voltei à casa, cansado do trabalho e da viagem a cavalo, corri logo ao banheiro improvisado. À noitinha quase não dormi com dores no corpo todo. Amanheci todo entrevado. Acometido de velho reumatismo, que me atacara pela primeira vez quando, quando tinha 17 para 18 anos. A doença durou semanas. Transformou meus planos. A boa população de Alagoinha mostrou-se sobremodo penalizada. Só me movia pelo braço dos outros. O sr. Isidro , meu vizinho, carregava-se nos braços da cama para a rede, como se fosse eu uma simples criança. Fiz meu auto tratamento. Zuleica me servia de dedicada enfermeira. A farmácia não se fechou. Minha cunhada Naninha estava passando dias conosco. Ficou à frente do estabelecimento. Mesmo doente eu a orientava. Entre dores, com ajuda do sr. Isidro, corrigi certa vez hérnia de pobre coitado mais sofredor do que eu.
Isidro Neri. Fonte: Bezerra, Hermes Pereira. Ipaumirim 60 anos.
Possuem as pequenas localidades do interior muitos defeitos. Desavenças entre famílias. Fuxicos de aldeia. Falava-se da vida alheia como o melhor dos divertimentos. Porém, nos momentos de necessidade todos se prontificam a servir uns aos outros sem medir sacrifícios nem exigir recompensas. Alagoinha em peso, se desvelou em dedicação comigo. Até na farmácia as outras moças iam ajudar espontaneamente a minha cunhada em seus trabalhos quotidianos. Na convalescença, senti-me enfastiado, procurei distrair-me organizando festas e piqueniques. Utilizava boa vitrola “Victor” de propriedade do capitalista local Sr. Luis Barbosa. 
Vitrola a corda RCA Victor anos 20
Luiz Pinheiro Barbosa. Fonte: Bezerra, Hermes Pereira. Ipaumirim 60 anos.
Porém, os negócios iam de mal a pior, em consequência de minha doença. A minha viagem para o Sul estava de pé. Aguardava apenas o chamado de Paulo. Resolvi voltar para o Crato e aguardar o dia da partida para São Paulo. Vendi o resto da farmácia de Alagoinha a um rapaz da Paraíba.
Fui encontra-lo anos depois dado ao vício da embriaguez. ”

(...)

"Como os negócios não saíram conforme o esperado, Figueiredo volta a Alagoinha, em 1930, conforme seu depoimento.
“Mas precisava fazer minha independência econômica. Estava com segundo filho – o  Caubi. Em breve os meninos precisariam estudar. . E eu, com diploma e sem meio certo de vida. Novamente me lembrei de Alagoinha. Meu fracasso ali corria por conta da doença. Não me esquecia daquele povo bom.
Voltei para lá em meados de 1930. Estava disposto a demorar-me alguns dias naquela localidade que me acolhera tão bem. Depois de realizar qualquer capital retornaria ao Crato para instalar-me por conta própria, definitivamente.
Recomecei a luta entusiasmado. Nova boa acolhida da população. Meu tio José Viana e sua família me receberam com a mesma dedicação anterior. Recomeçaram os chamados para a rua e fazendas da redondeza. Certa noite, o cabo comandante do destacamento veio me chamar. Na delegacia, um cabra todo ferido a facadas. Estava deitado na rede da sala de entrada da cadeia. Ali funcionava a delegacia local. Prédio baixo de duas portas. De trás do ‘litro’ ou prisão. O preso podia facilmente agarrar-se ao teto. Só não escapulia se não quisesse ou fosse muito mole. Aproximei-me da rede. Encontrei cabra mal-encarado. Dava surdos gemidos. A faca Parnaíba atravessara-lhe o pulmão. Facadas diversas noutras regiões. Coberto de barro, imundo, o orifício de entrada do principal ferimento. Os bofes estavam a sair, como diziam os matutos.  O ar do pulmão escapava pelo ferimento. Fiz os curativos. Empreguei todos os recursos ao caso e disponíveis na minha farmácia. Os presentes esperavam o desenlace fatal. Mais que depressa, mandaram o automóvel da terra buscar o Padre Carlos para ministrar ao ferido os últimos sacramentos.
 Quando o sacerdote chegou, o cabra começava a falar. Quer confessar-se, meu filho? Indagou-lhe o vigário com ar compungido.
- Não, Sô Vigaro, quero é me vinga.
No outro dia pessoa caridosa recolheu o doente para ficar melhor instalado em casa mais confortável. O organismo quase selvagem reagiu bem. Com poucas, semanas já andava a prosar e beber cachaça nas bodegas. Não se realizou sua vingança, conforme prometeu ao Pe. Carlos. Só sei que não quis me pagar. Meteu-se a valentão para o portador da cobrança. Eu é que não podia perder mais de duzentos mil reis de remédio. Dispensaria o dinheiro do tratamento. Sabia mesmo que seu organismo primitivo fora mais eficiente do que meus medicamentos. Porém, a realidade é que minhas prateleiras estavam desfalcadas. Por intermédio do meu tio recorri ao delegado. Este não foi perder tempo em conversas. Mandou o valentão vender uma vaca. Com o produto pagou a conta da farmácia e do automóvel que fora buscar o padre, em Umari. E mais alguns bicos nas bodegas. Nunca mais o vi. Disseram-me que era romeiro do padre Cícero e procedia de Pajeú das Flores, em Pernambuco. Bem dizia-se negociante alagoense, ao ver aquele homem, com poucos dias de esfaqueado a passar pelas ruas – ‘vaso ruim não se quebra. ’
Estávamos em época de completa agitação política. Lavras ocupada por forças do exército. A Paraíba em efervescência. Zé Pereira revoltara-se contra o exército do dr. João Pessoa e desligara Princesa do resto do Estado. Cajazeiras fora ameaçada pelos cangaceiros do caudilho revoltoso. Alagoinha encheu-se de famílias paraibanas. Aqueles assuntos sensacionais monopolizavam todas as conversas. Pertenciam os foragidos paraibanos às duas correntes opostas. E até se mostravam mais comedidos em comentários do que os elementos locais. Devido à orientação dos chefes políticos de Lavras, srs. Raimundo Augusto e João Augusto, em Alagoinha se torcia mais pela ala governista. 

Deixara-me contaminar pela exaltação da imprensa oposicionista e desde Campos Sales em ardoroso partidário da Aliança Liberal. Poucos partilhavam de minhas ideias. No entanto, mantinha-me comedido em discussões em atenção ao meu tio, muito amigo dos situacionistas de Lavras. Entrava no assunto com muito jeito.

 (...)

A vida em Alagoinha, de pouco a pouco, foi-se normalizando. Os paraibanos começaram a voltar. Passados os primeiros momentos de agitação, depois da morte de João Pessoa, tudo pareceu entrar em verdadeira calma. Ninguém mais acreditava na propalada revolução.
- Governo é sempre governo.
Estava certa e definitiva a posse do Dr. Júlio Prestes como presidente da República. Sempre aparecia em Alagoinha jovem alfaiate de Lavras. Partidário exaltado da Aliança Liberal. Gostava de conversar comigo. Certa vez, se sentou em meu modesto estabelecimento e começou a falar na possibilidade de futura mudança no cenário político do Brasil
- É a forçadas armas, acrescentou.
Não acreditei. Julguei-o simples visionário. Quis apostar comigo como dentro de poucos dias trocaria a tesoura de alfaiate pela farda e galões de oficial.
Disse-me que estava cansado de alinhavar paletós e costurar em máquinas. Muito melhor uma espada, um fuzil e até mesmo uma metralhadora. Tive vontade de indicar-lhe remédio para o cérebro. Seria a manifestação de para-sífilis?
Quando se despediu de mim disse-me com ênfase:
-A revolução virá e o governo cairá.
Estive pare denunciá-lo não ao chefe de polícia, mas ao diretor do hospício de loucos. Não estava alienado e nem sonhava o alfaiate de Lavras. Foi o profeta mais verdadeiro que vi até hoje.
Em manhã clara, ao abrir a farmácia notei grande roda de pessoas apreensivas, em torno de um caminhão, com placa da Paraíba. Aquele ajuntamento me chamou a atenção. À cata de novidades me aproximei do auto de carga. Pensei em tudo menos em revolução. Disseram-me que o batalhão de Sousa se revoltara contra o governo e matara seu próprio comandante, o bravo coronel Pedro Ângelo. 
Projeto nº 3560 de 1957 que promove 'post-mortem ao posto de General de Divisão o Coronel de Infantaria Pedro Ângelo Correa
Justificativa do Projeto 3.580 de 1957
O movimento também se estendia a outros recantos do Brasil.
Em Alagoinha, quase nas fronteiras da Paraíba, a gente sabia de todas as novidades favoráveis à revolução.
Três dias depois da revolta do batalhão de Sousa, estava eu quase a dormir de 11 para 12 horas da noite quando fui despertado por intenso fonfonar de autocaminhões. Ouvia também vivas repetidos à Aliança Liberal e aos próceres do mesmo movimento.
Levantei-me apressado a abrir a porta.
Na praça, uma fila quase interminável de carros de passeio e de carga, todos carregados de soldados ou civis armados, e com lenços encarnados ao pescoço. Soube logo tratar-se de coluna revolucionária que marchava em direção de Fortaleza.
Jovem oficial se aproximou de mim. A lua enchia de luz o lugarejo.
- Mestre, sabe dizer se há gente armada por essas bandas?
Reconhecio-o logo. Deu-me forte abraço. Tratava-se do tenente do exército João de Pinho Pereira, meu antigo colega do Colégio Diocesano e muito tempo meu vizinho da rua Formosa. Desempenhara papel importante na revolta de seu batalhão. 
Tenente João de Pinho Pereira. Fonte:
 Abri a farmácia para vender pastilhas de garganta para diversos componentes da coluna invasora. Todos ordeiros e bem-educados. A minha maior surpresa foi ver o tal alfaiate com lenço amarrado ao pescoço e o galão de tenente provisório.
Durante a passagem das tropas revolucionárias, em Alagoinha, notei que seus dirigentes se preocupavam mais com a posição do Juazeiro do Pe. Cícero do que com os batalhões policiais do Dr. Matos Peixoto.
Dr. Matos Peixoto
Governou o Ceará entre 12 de julho de 1928 a 8 de outubro de 1930, ao ser deposto pelo governo provisório de Getúlio Vargas.
 Estive em Lavras, no dia seguinte, à noitinha. A Praça da Matriz um acampamento só. Ao aproximar-me do telégrafo, para saber notícias de Crato, ouvi tiro seco de um fuzil. Automaticamente toda aquela tropa acantonada na praça se movimentou. Manobra de armas e posição na mira do fuzil, em direção de todos os lados.
Um grito reboou. Parecia ser dado por um oficial habituado a emitir ordens.
- Foi apenas tiro casual. Acalmem-se. Não foi nada!
Tratava-se nada menos do que do jovem alfaiate meu amigo da conversa da farmácia em Alagoinha. Nem se parecia com o artífice de há oito dias.
Encontrei-o meses depois! Já destituído de seu posto. Voltou à agulha e à tesoura.  A revolução vencedora já não precisava dos seus serviços. Afinal tinha a sua arte. Também se faz muito pela Pátria com o trabalho quotidiano exaustivo e honesto.
Depois que chegou a notícia da queda do situacionismo cearense, se operou inteira transformação no ambiente político de Alagoinha. Foi uma virada geral. Tecidos de cor encarnada esgotaram-se nas lojas para a confecção de lenços e bandeiras. Chegou o achincalhe dos antigos governistas, tanto do Município como do Estado. Saíram da boca de muitas cobras e lagartos. Metiam o pau principalmente nos feitos dos chefes políticos de Lavras.
Quando cheguei ali, tive a impressão de que aquela população era completamente dedicada a seus antigos dirigentes políticos. Aparência enganosa. Mas naquele momento tinham sido derrotados. “Ai dos vencidos’!
Passados os primeiros entusiasmos com o rápido movimento revolucionário vencedor, começaram a aparecer os efeitos econômicos de maneira desastrosa para a região. Negócios parados. Matuto não gosta muito de barulho. Quando sabe de qualquer notícia que cheire a pólvora, recolhe-se à sua fazenda ou à sua casa. Não aparece nem nas feiras das grandes localidades, nem nos vilarejos.
Previne-se contra qualquer eventualidade, junta o que possui de comestível e compra o menos possível. Quando passa a tormenta é que começa a botar a cabeça de fora.
Minha farmácia foi atingida em cheio pela crise. Cada dia que se passava mais se arruinava a situação. Tive que arrumar as malas e voltar para o Crato.”

FIGUEIREDO FILHO, José de. Boticário de aldeia. In: ___. Meu mundo é uma farmácia. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar/Programa Editorias, 1996. Pp. 95-106.

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