MULHERES DE IPAUMIRIM



MLUIZA

"Ainda que desmanchem meu castelo
E todo "não" manche o meu vestido
Até quando eu duvido do que é certo
Se a minha carruagem já tiver partido...
Eu ainda sou uma princesa
Com meus sonhos, flutuando em mim mesma
Tecendo a minha renda com retalhos,
Procurando algum brilhante na tristeza
Querendo um final de purpurina
Pra essa tarde, pra essa história, pra essa vida."
(Sarah Westphal)

Tantas passaram e a gente nunca lembra. É preciso um dia da mulher, uma semana da mulher, e sei lá mais o que pra gente parar e SE lembrar de não esquecer. Não são heroínas da história, não são celebridades, nunca estiveram na mídia.. São aquelas mulheres que fazem o nosso cotidiano. Cuidam dos filhos - seus e/ou de outras, fazem feira, administram a casa, ajudam na comunidade, estão sempre perto e compõem a paisagem doméstica. Parecem inexistentes de tão comum que parecem ser. De repente, um dia, elas vão embora. Pronto. A C A B O U. The end. Aí, elas ressurgem nas nossas lembranças numa outra dimensão. O sentimento de perda incentiva a construção de uma fantasia composta a partir do que foi real mas permeada da saudade que sentimos. O tempo vai passando e elas vão sumindo da memória familiar e comunitária até que um dia deixam simplesmente de existir até o momento que alguém decide imortalizá-las numa árvore genealógica.

Devia existir também uma árvore (como se chamaria?) das comunidades, algum registro que elas passaram por aqui. Essa coisa fabricada do dia da mulher me fez pensar em três coisas: a primeira delas é que eu quero as flores em vida, como na música de Nelson Cavaquinho. A segunda, pedir desculpas pelas flores que eu não dei. A terceira é que, de alguma forma, o meu sentimento de dívida com as mulheres que fizeram o cotidiano de IP e das quais nunca lembramos.
Percorri ruas, tempo, eventos e fui pescando algumas delas. Claro que não lembro todas e nem tenho esta pretensão. Resolvi dar um corte e falar das que já não estão aqui. As que estão conosco ainda há tempo de receber flores. Às que partiram, a nossa lembrança.
São tantas... Por onde começar? Pela rua da matança ou pela rua do colégio? Pela rua da sombra ou pela rua do sol? Pelos becos? Pelo comércio? Pela praça? Pela igreja? Pela escola? Pela beira dos riachos? Nos escritórios? Existe algum lugar onde elas não estiveram?
Começo pelas mais velhas que eu lembro. Dona Naninha Alexandre que aos, 62 anos, teve a ousadia de ir ao Palácio do Catete, Rio de Janeiro, falar com Getúlio Vargas e pedir em favor da obtenção do seu desquite do casamento com Pedro Alexandre. Dona Piquilí, saia longa, cabelo bem penteado que invariavelmente usava seu colírio Moura Brasil. Iaiá Crispim, miudinha, costurando e enfiando linha na agulha sem ajuda de óculos. Morava com sua filha Mundinha, miúda como a mãe, sempre alegre com a casa cheia de filhos. Sua vizinha era Dona Maria Serafim, mãe de Francisquinha que tinha habilidade especial em trabalhar com massa e tecido, fazendo lindos cachinhos coloridos com os quais as mulheres enfeitavam vestidos.
Maristela Bezerra, cabecinha branca, roupa muito bem passada, firme nas suas opiniões, católica fervorosa. Tea, uma lembrança próxima e muito boa que eu tenho desde que ela morava vizinho à casa da minha vó. Depois, Adolfo fez uma casa bonita e eles foram morar na rua do colégio.
Maria Abreu que chegou na casa da minha vó saindo de um casamento desfeito. Viveu conosco até a morte da minha vó quando se desfez a grande família que incluía os agregados. Fazia renda de bilro. Tenho saudade dela.
Na rua do colégio, moravam Lindalva (de Afrodísio), Neusa Dore com seu jeito especial de conversar (Homens deixam de comer no prato para comer no coxo). Alzenira Holanda (que difícil deve ter sido sua vida nos duros tempos da ditadura), Ivone Souza, Leopoldina Nóbrega, Maria Líbia, Mirô (de Josa), Dona Chicô (de Vicente Piquili), Ormezinda Souza e Dona Almira, barbaramente assassinada pelo seu marido. Crime passional que abalou a pequena cidade.
Antes da ponte e nas imediações, lembro de Maria Pessoa, Rosinha de Manuelzinho, Graziela Moura, Rosinha (de Odilon), Nilda Nery, com seus colares e pulseiras, trabalhando na Sousa Fernandes. Dona Florinda, de Pedro Osório, a casa de cheia de moças, Anita sempre vistosa. Creusa que costurava tão bem, Maria de Bernardo.
Depois da antiga prefeitura, lembro de Maria Nery que gostava de sentar na sua cadeira, na calçada, Maria Sousa professora de bordado, Olga Sousa, professora rígida que metia medo nos alunos mas sabia ensinar. Ai de quem não aprendesse. Quininha, magra e esbelta.
Na rua da sombra, Marçala, Águida com seu famoso pão de ló, Eugênia, Zefa Ribeiro, Bernardina, Francisquinha (de Senhor Damião), Maria Luna, Beatriz (adorava a igreja), Nena , fã de talco, espirituosa e querida. Joaninha Barbosa, muito calma, indo para a sua farmácia onde trabalhava. Carlota Henrique, prestativa, cedeu a sala da sua humilde casa para servir de sala de aula porque o vilarejo não dispunha de instalações para a demanda de alunos. Aurora, minha mãe de leite. Santana que acabou tão cedo com a sua vida. Licor Gonçalves, meiga e doce. Maura (de Antonio Correia), Ecilda Ribeiro, Caboclinha Freitas, Lidinha Barbosa, Tintinha Saraiva tinha um jeito especial de tecer comentários que me matava de rir. Belinha Pires vivia na última casa da rua, ao lado da Praça do Posto, hoje Praça Ademar Barbosa. Por ali vivia também Zefinha Felinto, e mais acima Maria Rita. Perto, viviam Longina, Dadinha e ainda Rosinha (de Sebasto Barbosa).
Mais acima, na volta da Rua da Matança e perto do posto de saúde, viviam Maximina com suas saias coloridas e rodadas, Naninha (do cego), Cartucha lavadeira. Ali, pela atual Rua das Flores o lembro de Jane Dore que faleceu tão jovem e Marieta Evangelista.
Voltando pela rua do sol, lembro de Maria Gecília, Maria Alzira, Dona Vicência Cassiano, Toinha Batista, Lica (de seu Vicente), Euclice, Clineia, Chiquinha (de João Leandro) e Maria Baraúna.
Da Praça Padre Cícero, lembro Irinea Jorge e Toinha (de Manuel Sapateiro).
No beco do cemitério, lembro Otília Sobreira e Dona Rosário. Na rua atrás da rua da sombra, viviam Mariri Gonçalves, Vicentina, Júlia, mãe de Tutu, que vendia coentro, e Luiza (de Aurélio). Maria Henrique e Maria Lourenço, fiel guardiã e zeladora da igreja. Marlene, neta de Custódio, que morreu jovem.
Tinham tantas outras que eu não recordo onde moravam mas que fazem parte das minhas lembranças: Espírito Santo, Gertrudes, Maria Antonia com a trouxa de roupa na cabeça, Expedita com aquela sua conversa atrapalhada, Balbina com suas garrafas de chá. Personagens populares que fazem o cotidiano da cidade e que acabam tão queridos e respeitados, como Julinha que conquistou, passo a passo, a sua integração numa comunidade preconceituosa e cheia de ranço.
Personagem especial que um dia gostaria de falar um pouco mais era Bilina. Negra alta, magra, muito asseada, completamente devotada a Pedro, amor platônico que embalou sua vida.
Na Rua 14 de dezembro, viviam Soledade Macedo, minha tia Cristina Lemos e Cecília de Manuel Gomes. Também passaram por essa pequena rua Ivone Brasileiro, Luizinha Gonçalves, Zefinha Batista, Francisca Lacerda e Adalgisa Josué.
E, finalmente, falo de minha avó, Maria Nóbrega, mulher de fibra, corajosa a quem pude compreender suas atitudes muitos anos depois da sua morte quando tive, por acaso, a chance de conhecer a história de sua família na dureza  entre os séculos XIX e o princípio do século XIX. Por trás da minha vó, havia décadas de poder político exercido com mão forte, posteriormente esfacelado quando o General Dantas Barreto ganhou o Governo de Pernambuco, em 1911, e dizimou todo o sistema político do sertão destituindo as lideranças e trazendo à tona os seus seguidores e correligionários políticos interioranos. Como diria Dona Genisa Lócio,” os sofás caíram e as trepeças subiram”. Esta expressão que ouvi de dona Genisa representa o mais profundo desprezo da classe dominante sobre os seus adversários políticos e economicamente menos privilegiados. Essas alterações entretanto não mudaram o sistema político que continuou exatamente igual apenas com novas lideranças menos, digamos assim, tradicionais. Alçada deste meio pelas questões políticas, imagino como deve ter sido difícil para ela mudar de lugar, sair do contexto da família e chegar ainda criança numa Alagoinha inóspita e cheia de dificuldades. Seus pais voltaram para Pernambuco mas ela ficou em Alagoinha com o seu marido, Luiz Leite da Nóbrega. Refiz os seus laços perdidos 100 anos depois quando reencontrei a sua família.
Eu poderia enveredar pelos sítios mas a lista ficaria mais longa e já me bastam os lapsos em relação ás mulheres da cidade. De um jeito ou de outro, citadas ou não, elas fizeram IP para nós e povoaram a nossa infância de personagens que até hoje sobrevivem cada vez que remexemos no passado.
MLUIZA
PUBLICADO NO ALAGOINHA.IPAUMIRIM EM 07.03.2010

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