Eu sempre
acho que carta é, antes de tudo, uma confissão. Para o bem ou para o mal. Um
envelope lacrado trazido pelos correios é sempre um segredo e um fetiche. Isso já não existe,
mas eu gostaria de receber cartas. Cartas manuscritas.
Eu
cresci ouvindo cartas. O correio entregava na loja do meu pai cartas vindas de
vários lugares, principalmente de São Paulo onde fixavam-se as levas de
migrantes expulsos pela miséria e despejados nos paus de arara em busca de
melhores condições de vida. No domingo, dia de feira, os destinatários vinham buscar
suas correspondências. Quando a feira diminuía o movimento, no período da tarde, as
pessoas pediam a meu pai para ler as cartas. O conceito de privacidade era
zero. Ficava um bocado de gente reunida aguardando sua vez e papai ia lendo,
uma por uma, as missivas esperadas com ansiedade. E eu ficava lá, junto, escutando. E
como a maioria falava das mesmas coisas, as emoções eram coletivas. Os sucessos
comemorados. Os desacertos lamentados. E haviam alguns constrangimentos pela indiscrição do escrevente no
terreno das fofocas vindas de tão longe. Uma coisa eu sempre observava: meu pai
nunca abriu uma carta sem a presença do destinatário. Assim, algumas ficavam de uma semana para outra até que o dono aparecesse. A reunião aos domingos para leituras de
cartas era, de uma certa forma, uma mídia personalizada para público restrito num
mundo analfabeto e ainda de raríssimo acesso ao rádio. Acredito que, logo
depois, o boca-a-boca espalhava as novidades. Zenira Gonçalves Gomes, diretora
do grupo, também exercia essa função com muita paciência. Quem lê cartas
precisa ter sensibilidade e um certo dom de interpretação para acompanhar a
emoção do escrevente. Pausas, suspiros, exclamações são fundamentais para manter o ritmo preciso da
leitura e dar vida ao conteúdo.
Aí
pelos anos 60, eu tive acesso a um novo tipo de cartas que não eram de
familiares. Eram os clubes de correspondência onde as pessoas se anunciavam e você
escolhia alguém para se corresponder. Digamos, eram os antecedentes dos
modernos sites de relacionamento. Qual a adolescente que não queria ter um correspondente?
Eu tive dois. Um chamava-se Dionísio e era de Aurora. Foi uma colega de
pensionato, lá no Crato, que intermediou esse contato. Conheci, depois, o tal correspondente
que era um moreninho muito jeitoso. Mas, como ele estudava na Escola Agrícola de
Lavras da Mangabeira onde também estudava uma turma grande de Ipaumirim, as minhas
cartas circulavam como, aliás, todas as cartas do colégio agrícola eram
socializadas entre todos. Quando chegavam as férias os meninos descaradamente comentavam minhas cartas. Na minha cara! Sem cerimônia. Na verdade, isso era um costume não sei da época ou da idade. Éramos todos adolescentes e entre as meninas as cartas também circulavam. Eu mesma li inúmeras cartas apaixonadas de um monte
de gente. Depois, tive outro correspondente, de Uberaba, que me mandou uma foto
3x4, mas esse perdeu-se no tempo. Esse eu achei numa revista. Era um compridão feioso. Parece que se chamava
Ernani. Conhecer um correspondente era um evento e uma emoção. Amigos e amigas
ficavam na expectativa do encontro.
As
cartas de amor, como diz Fernando Pessoa, podem ser ridículas, mas são um alento. Sugestivas, ajudavam a manter os relacionamentos. E a fantasia, principalmente. Num Ipaumirim distante
de tudo a estudantada escrevia suas cartas enquanto aguardava os encontros
durante as férias.
Quando
surgiram os vídeos cassetes e se popularizaram as filmadoras, as cartas
perderam o sentido. As pessoas passaram a enviar fitas de vídeo cassete. Zenira, sempre
prestativa, comprou um vídeo cassete onde passava fitas vindas de todo o
Brasil. Chegou vídeo de fulano de tal. Aí, todo mundo ia assistir na casa de Zê. Familiares, amigos e quem mais chegasse. O vídeo é moderno. Explícito, incisivo, não
permite exercícios de imaginação. E, nisso, ele perdia de longe para as velhas cartas com suas amplas possibilidades de leituras e interpretações. Tem cartas que até merecem um toque de perfume. Um vídeo nunca será perfumado. Uma carta pode ser mil cartas mas um vídeo é singular. É só um vídeo e pronto.
Depois,
com a consolidação da tecnologia da informação, as cartas minguaram de vez. Sobraram
para nós os extratos de contas a pagar, muita mala direta, ou seja, nada que
nos traga surpresas e emoções. Diga-se, de passagem, que nem mais o correio se
interessa por cartas.
MLUIZA
RECIFE,
15.02.2018
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