JULHINHA, ESSA MULHER



MLUIZA
 - Essas quengas não conhecem seu lugar
- Estão cada vez mais atrevidas.

O cochicho indignado das mães de família não abalava a irreverência das mulheres de vida fácil. Num velho jipe sem capota, maquiagem carregada de rouge e batom encarnado, fantasias de laquê em cores vivas e muitos babados, elas desafiavam a comportada Ipaumirim nos dias de carnaval. Davam a sua volta gloriosa a caminho do Baixio cortando a cidade e a moralidade provinciana. Os homens, dissimulados, calavam em público, mas deviam se deliciar com tanta ousadia.
Na calçada da casa do meu avô, eu observava aquele corso solitário e alegre. Eram as famosas raparigas do cabaré de Julinha brincando o carnaval fora do seu território.
Muitos outros cabarés famosos existiram em Ipaumirim. Lembro que ouvi contar do antigo cabaré de Cesarina e Ginu, das festas da Nova Brasília, às margens da BR 116, das perversidades do cabaré do Posto Fiscal. Nenhum deles deixou a marca alegre da casa de Júlia, próxima da ponte do riacho mais conhecido como o 23 e defronte a rodagem que dava saída para Lavras da Mangabeira, Crato, Fortaleza, Icó e muitos sítios no município e redondezas.
De onde veio Júlia, mulher miúda, de olhos pequenos e sorriso maroto, que administrava aquele território de prazer onde se ensinava os homens a amar suas distintas e recatadas ‘senhouras’?

Em dezembro de 2002, eu pedi a Júlia para conversar com ela. Reticente e desconfiada, ela concordou para não ser indelicada. Firmamos um compromisso. Ela só falaria do que quisesse e eu não perguntaria nomes.
- Tu vai escrever um livro sobre mim? – perguntou.
- Não, Júlia, eu vou achar um jeito de guardar você na memória de Ipaumirim.
Fique tranquila.
Julia abre seu sorriso maroto e pergunta:
- O que você quer saber?
- Só que você quiser contar, respondo.
Não levo gravador nem máquina fotográfica para não quebrar a nossa naturalidade. Somos duas mulheres conversando sobre a vida. Trago apenas um caderno onde vou fazer as anotações. Esperamos que Elza, sua filha,  traga o café antes de começar a nossa conversa. Júlia está vestida com um bonito robe cor de rosa que ganhou de presente.
Enquanto tomamos o café, Elza limpa a estante com óleo de peroba. A casa é humilde. O piso de cimento queimado brilha de tão limpo. A decoração simples traz fotos, quadros e imagens. Uma foto ampliada de Dr. Miraneudo Linhares, médico e ex-prefeito da cidade, outra de Júlia, ainda jovem, em branco e negro, fotografada por Zacarias Pontes, no curral de Cícero Fernandes. Um quadro de Padre Cícero a quem Júlia presta homenagem vestindo preto todo dia 20 de cada mês. Em cima de um aparador com várias imagens, destaca-se uma pomba representando o Divino Espírito Santo. Na estante, a foto do neto que trabalha no Mc Donalds, em Brasília.
O calor insuportável do verão sertanejo incomoda. Sentamos perto da porta de entrada para melhorar a sensação de abafamento.
MLUIZA
                             
JULHINHA
"Uma parte de mim é todo mundo"


Filha de retirantes, Júlia Maria da Conceição nasceu em Caririaçu, no dia 06.01.1927. O pai, Tiburtino Pereira dos Santos, da serra de ´´Aguas Belas (PE) casou com sua mãe, Justina Maria da Conceição, morena clara, baixinha, alagoana de Palmeira dos Índios. Ela não sabe a data do casamento mas sua mãe contava que foi no tempo de uma fome muito grande.
Antes de migrar para o Ceará, a família tinha um pequeno sítio de café. Muitos morreram acometidos da gripe popularmente conhecida como ‘bailarina’. Era a gripe espanhola que chegou ao Brasil pelo Porto do Recife, em setembro de 1918, trazida pelos marinheiros que prestavam serviço militar em Dakar, no Senegal.
Na década entre 1910 e 1920, Juazeiro do Norte passa por período de grande efervescência política e econômica. Na década anterior, apesar do seu considerável desenvolvimento, a vila de Tabuleiro Grande como se chamava anteriormente, pertencia ao município do Crato.
Floro Bartolomeu, médico baiano, que chegou ao Ceará no ano de 1908 em busca das minas de cobre de Coaxá, no município de Aurora, termina fixando-se Juazeiro e aliado ao Padre Cícero impulsiona o desenvolvimento da região.
Em 1911, passou a ser Vila do Juazeiro e Padre Cícero foi nomeado seu primeiro prefeito. Em 1914, a vila foi elevada à categoria de cidade. O messianismo religioso e o dinamismo que o padre implanta na cidade estimulando a cultura e as artes populares, impulsiona a economia local e atrai multidões de famintos vindos das mais variadas regiões do Nordeste.
É nesse contexto que parte da família de Júlia chega ao Juazeiro do Norte onde morreram vários deles, alguns de fome. Para sobreviver, a mãe pedia esmola, preparava um caldo e dava uma xícara a cada filho. O seu pai morre quando Júlia ainda estava na barriga da mãe. Dos 17 filhos que tiveram, sobreviveram apenas Júlia e o irmão Deoclécio. É do irmão velho, a sua lembrança mais doída. Chamava-se Poliano. Morreu aos 8 anos. A criança queixava-se constantemente de fome e dizia para sua mãe que ia morrer porque não tinha feijão para comer. Júlia não o conheceu, mas sua mãe se martirizava ao contar-lhe este retalho de lembrança quase todos os dias. De tanto ouvir, a garota assimila o sentimento de culpa. O medo da fome e a herança da culpa involuntária marcaram sua infância e lhe perseguiram durante toda a vida.
A nossa conversa é interrompida por um silêncio pesado. Ela mergulha nas suas lembranças e se emociona.
- Eu não gosto de comer só. Mesmo pouco, preciso repartir com alguém, diz Júlia.
Elza entra rapidamente na sala, recolhe as xícaras e pergunta para que aquele copo com água em cima da mesa. Júlia explica que a chuva da noite anterior veio com muito vento arrastando a poeira. Ela preparou uma solução de água e sal e jogou no terreiro para espantar a ventania. Segundo ela, um método infalível que usou a vida inteira nas noites chuvosas quando as mulheres ficavam apavoradas com medo de tempestades.
Com a morte do pai, a mãe e o irmão migram para a área rural localizada na serra de São Pedro.  Foram viver perto da irmã de uma irmã de seu pai. No período de migração da família, Manuel Cilivesti e Zefinha Cilivesti decidiram se instalar no pequeno povoado onde conseguiram algum recurso. Tinham uma pequena propriedade na localidade de Queimadas onde eram proprietários de uma casa de farinha. Lá, Júlia nasceu e eles foram seus padrinhos de batismo.
Justina foi trabalhar no sítio Vitorina, propriedade de Manoel Vitorino, onde moravam numa pequena casa de tijolo. Dormiam em rede ou sobre uma cama de vara com um colchão de palha de banana. A mãe não os deixava dormir no chão.
O dia de serviço, no campo, era aproximadamente cinqüenta tostões. Recebia por semana e dava para comprar um pouco de arroz, açúcar, café cru e carne. Abastecia-se na venda de Carlos Morais.
Na região haviam muitas casas de farinha e durante as farinhadas eram dois meses de festa. No período, sua mãe trabalhava como serradeira de mandioca. No inverno, plantava milho e botava vazante nas terras do patrão. Para ajudar no sustento, era parteira na redondeza.
O parto era sempre um segredo entre comadres. Quando difícil, vestia-se a parturiente com a camisa do marido pelo lado avesso para facilitar o trabalho de parto. Nos três primeiros dias de resguardo, a mulher só podia sentar-se de lado. Com quatro dias, podia sentar-se no chão sobre uma esteira de palha de bananeira. Tinha que manter a cabeça amarrada com um pano para cobrir os ouvidos. As crianças só tomavam conhecimento oito dias depois do parto quando a mulher já podia sentar-se normalmente. Se havia extrema necessidade, podia descer algum batente desde que contasse com ajuda de alguém. Para Júlia, esses cuidados garantiam a saúde das mulheres daquela época.
Assim viviam entre Juazeiro do Norte e o pequeno povoado de São Pedro do Cariri, posteriormente Caririaçu, trabalhando alternadamente na farinhada e no corte do arroz.
O corte de arroz era uma atividade basicamente feminina, exercida principalmente por mulheres viúvas. Cabia aos homens cortar e carregar cana. O pagamento era recebido a cada dia. O patrão chamava-se José Bezerra, pai dos coronéis Adauto e Humberto Bezerra, figuras de destaque na política cearense no período da ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964.
A mãe levava os dois filhos para o trabalho e os deixava brincando embaixo de um pé de juá. Ali, as crianças ficavam durante a jornada de doze horas, das seis da manhã às seis da noite. De manhã, tomavam café preto com farinha seca. Colocava a farinha dentro do café e tomava. O almoço variava entre feijão, xerém de milho, baião de dois ou mungunzá que a mãe pilava num pilão de pedra. Também se alimentavam da farinha de semente de jerimum, seca e torrada, que a mãe pilava. Haviam os tomates que nasciam em penca atrás de casa e eram comidos com açúcar. A mãe comprava um jogo de corredor, salgava a carne e guardava. Com o osso fazia um pirão. Julia foi criada com leite de cabra.
As vizinhas costuravam-lhe as poucas roupas. Júlia lembra seus vestidos de xadrez confeccionados com tecido barato, o mesmo também utilizado para toalha de mesa. A mãe usava saia comprida, com dois babados sempre nos tons azul e preto porque era viúva.
Justina era asmática e o corte de arroz, realizado com água até a cintura, agravava cada vez mais sua saúde a cada temporada de trabalho. Um dia foi se receitar com Padre Cícero. Levou junto os dois filhos para serem abençoados. O padre colocou a mão sobre a cabeça das crianças e deu-lhes sua benção. Receitou-lhe um remédio que a fez melhorar um pouco, mas logo depois ficou outra vez doente. O irmão também sofria de asma.
Um dia, a mãe voltou para casa com muito cansaço e febre alta. Foi piorando e por volta de três horas da tarde faleceu. Júlia estava junto e correu para chamar a vizinha. O enterro foi na rede. As duas crianças voltam do cemitério para casa com uma mocinha que passa a dormir com eles. Era 1934. Júlia não lembra o mês nem sabe a idade que a mãe tinha.


Já não há mais condições de continuar nossa conversa. Júlia desaba num choro comovente. Fico emocionada e constrangida. Demoro mais um pouco e vou correndo para minha casa, não quero perder minhas informações. Tenho que registrar tudo no meu caderno de anotações. Nossa primeira conversa durou cerca de três horas.


MLUIZA
MLUIZA
 As tardes quentes do sertão deixam a gente meio mole, uma sensação de indolência que me consome quando saio da rotina. Olho da porta da minha casa e o ar parece que está tremendo. Esse fenômeno tem um nome mas não lembro agora. É preciso disposição para botar a moleira no sol e sair de casa.
O sol quente parece que vai derreter o juízo. Mas a conversa com Júlia é tão rica que pego meu caderno de anotações e lá vou eu.
Dobro a esquina de Zé de Bidu, sigo pelo beco de Zé Alves e subo a rua do cemitério. Penso no verso de Cecília Meireles:

Dize-me tu, se é muito tarde
se a vida é longa e a dor é perto
e é tudo feito de acabar-se."
("Serenata", in Retrato Natural).

Passo defronte ao que um dia foi o clube da cidade. Dá pena. O velho clube está um lixo. Passo na frente da Toca do Jia e subo pela rua estreita da cadeia e da antiga casa do motor da luz. Tudo descuidado. IP tem uma vocação especial para o descaso com o seu patrimônio.
Chego na pequena rua de casas humildes onde mora Júlia. Atrás, fica o muro do cemitério. Chama-se Rua Presidente Kennedy. Qual o sentido de uma rua com esse nome em Ipaumirim?
Chego na expectativa do café de Elza. Fico mais à vontade para observar o entorno e ver detalhes. O piso sempre brilhante. (Eu e a minha paixão por piso de cimento queimado)
Na estante, além da foto do neto, um jogo de pratos e duas floreiras. Um conjunto de quatro cadeiras de plástico, brancas, duas cadeiras de balanço. Na mesinha coberta com uma toalha vermelha sob uma toalha de crochê, percebo outras imagens que lá estavam mas que eu não havia visto na visita anterior. Menino Deus, Nossa Senhora da Rosa Mística, Nossa Senhora desatadora dos nós, Santa Joana D’Arc.
Na casa humilde e bem cuidada, não há camas. A água que bebemos é sempre fresca. Elas não possuem geladeira mas tem um pequeno gelágua que lhes garante água gelada o dia inteiro.
Tomamos o nosso café e retomamos a conversa. Elza é discreta, sai de perto para nos deixar mais à vontade.
MLuiza
28.12.2002

JULHINHA

Com a morte da mãe, o irmão, que tinha alguma experiência como tropeiro, veio para Lavras da Mangabeira trabalhar nas terras de Dori Ferrer. Júlia ficou aos cuidados de um tio materno. O tio casou e ela foi entregue a duas tias paternas. Com elas, migra para Bom Jesus, antiga Aroeira, na fronteira  entre Ceará e Paraíba, onde moraram aproximadamente um ano nas terras de Doca Carlos.
No período, o pequeno povoado desfrutou certo progresso em função de uma pequena usina de algodão instalada por Sebastião Bandeira de Melo. Esse empreendimento trouxe muitos empregos ao pequeno povoado e dinamizou bastante a feira local considerada, na época, uma das melhores da região. É provável que as tias de Júlia tenham vindo até lá em busca de trabalho. As tias trabalhavam e a garota ajudava nas tarefas domésticas. Pouco tempo depois, voltaram para Juazeiro e daí para Serra Verde, terras do Major Botelho, homem influente na região de Caririaçu.
Nesse ínterim, o irmão já instalado em Lavras, manda buscar a irmã e deixa a menina na casa de um casal de agricultores cuja mulher era sua madrinha de fogueira e, posteriormente, foi também madrinha de Júlia. O irmão casa com uma professora rural e Júlia vai morar com eles no Sítio Cachoeira, terras de Dori Ferrer. Júlia toma Necita, esposa de Dori, como sua madrinha de crisma.
Quase uma criança, morando com o irmão, ela arruma um namorado. Não lembra bem o ano que casou mas lembra do noivo. Chamava-se Manuel Porfírio, oriundo de Buriti no município do Crato, a quem ela chamava respeitosamente de seu Manuel. Namoravam na casa da madrinha de fogueira, ela na sala e o rapaz no terreiro conversando com os donos da casa. Depois de casados, ficaram morando no Sítio Cachoeira.
Julia teve sua idade aumentada para casar. Segundo ela, casou porque o povo tinha pena dela por ser órfã. Ela lembra que Manuel era um homem bonito e trabalhava cortando dormentes para a estrada de ferro. Julia casou virgem e passou seis dias na casa da madrinha de fogueira depois de casada. Não queria ir para casa do noivo, tinha medo de ficar só com ele. As mulheres mais velhas da comunidade foram aconselhar a garota a cumprir o destino das mulheres e a levaram para sua nova casa.
- “Minha filha, a gente casa pra isso mesmo, pra servir a eles”.
A intimidade se fazia penosa e difícil. O noivo inseguro recebe uma orientação de Dori Ferrer para uma abordagem mais convincente. Necita e as mulheres mais velhas orientam Júlia para aceitar o marido. Julia aprendeu que precisava cumprir os deveres de esposa, porque essa era sua obrigação.
- “Era o jeito!”
Teve uma lua de mel de insegurança e medo, chorava muito e logo ficou grávida. A camisola aberta, na frente, transpassada ao lado era fechava com tira que se encerrava num laço. O marido apenas abaixava a cueca. Nunca se viram totalmente despidos. A exposição do seio só era possível na amamentação. O marido era carinhoso, mas ela não gostava. Não sabe se não gostava dele ou do carinho. Ficou grávida aos 13 anos. Na gravidez, a sexualidade é esporádica e reservada. Tiveram cinco filhos seguidos. Após o banho dos 15 dias de resguardo, reiniciava a atividade sexual e imediatamente começava outra gravidez. Só ficaram dois: Elza e Rizomar. Ela lembra que o mais velho, Luiz Gonzaga, morreu desidratado.
O marido foi empreitado pra fazer um trabalho em Miguel Calmon, em Mombaça. Lá, ele botou uma roça e defronte à casa onde moravam, vivia um casal. A mulher, bem mais velha, passa a ter um relacionamento com seu marido. Ele chegava do trabalho e ia para casa da mulher onde tocavam viola. Um dia, ele diz a Júlia que vem para Lavras terminar uma casa que tinha começado no Machado. Vai embora com o irmão dele e a família da amante. De manhã, Julia vai à cidade saber de um dinheiro do milho que ele tinha vendido e descobre que ele tinha comprado cortes de tecido para a amante e fugido para Senador Pompeu. Junta os filhos e os trapos e vai atrás do marido. Não o encontrou em Senador Pompeu. Seguiu para Maria Pereira (atual Mombaça) e de lá para Tauá onde uma mulher lhe deu guarida. Cuidava dos animais, por esse trabalho recebia alguma coisa e ainda o leite das cabras. Aprendeu a fazer queijo de leite de cabra. Quando sobrava leite de gado, a mulher também lhe dava par fazer queijo.
Era 1942, uma das maiores secas que o Ceará atravessou. Com a criação das Frentes de Trabalho, Júlia consegue ganhar uns trocados como faxineira do escritório local. Complementa a mísera renda trabalhando no preparo do tempero para comida dos cassacos. Na ocasião, só havia sal grosso. Aproveitando as tardes, ela pila o sal para adicionar aos temperos que preparava a partir da sobra de sebo das carnes que vinham para alimentar os trabalhadores. Cozinhava o sebo no leite temperado com alho e pimenta do reino. Enchia garrafas que vendia a 1,00 (quanto seria???) Também fazia buchada quando era chamada para cozinhar nas casas de família e ganhava mais uns trocados.
Depois de algum tempo, resolve voltar para o Juazeiro do Norte. Vai para a casa de um tio trabalhar na limpa de arroz. As crianças ficam em casa com a mulher do tio. Também cortava capim, fazia o feixe e ia vender para alimentação dos animais na feira do Juazeiro. Nessa luta passou cerca de seis anos.
Na volta ao Juazeiro do Norte, Júlia entra na prostituição. Começou com um guarda, casado. Daí, voltou, com os filhos, para Lavras da Mangabeira onde passa um tempo trabalhando na confecção de vassouras de palha de carnaúba. Deixa os filhos em Lavras. Elza foi criada por uma tia de Dr. Miraneudo Linhares Garcia. Quando a garota tinha 13 anos, Julia foi buscá-la na casa de D. Sinhara e deixou-a com outra pessoa. Elas só voltaram a morar juntas muitos anos depois quando as duas deixaram ‘a vida’.
Júlia vai, sozinha, instalar-se na cidade de Cedro e começa a atender profissionalmente. Monta uma pequena casa, só para ela, e consegue organizar uma carteira de clientes selecionados na elite local.

MLUIZA
 Estamos no último dia de 2002. Essa sensação de juízo final presente ao fim de cada ano sempre me desperta um sentimento de desamparo. Em IP não tem festa. Em minha casa, meus pais estão dormindo. Minha filha foi passar as festas do fim do ano com a família do pai, meu irmão está na casa dele. Aproveito para rever o texto de Júlia e rascunhar a introdução.
Nos três dias gastamos, mais ou menos, nove horas em nossas conversas. É cansativo para a idade dela. Datação é uma dificuldade grande. Consigo localizar o tempo pelas marcações dos acontecimentos.
Entre nós há bastante empatia e não foram esses os nossos únicos contatos. Mas é diferente quando a conversa tem objetivos porque há um caminho a seguir. A empatia, de uma certa forma, pode favorecer a dispersão. É preciso ficar atenta para não perder o rumo, o que é mais difícil quando se fala sobre contextos compartilhados. Enquanto Júlia vai tecendo suas lembranças, principalmente na última fase de nossa conversa, eu revejo um Ipaumirim que eu vivi com seus rostos e costumes.
Conversar com Júlia foi uma experiência fascinante. Ela não sabe ler mas tem uma percepção aguçada pela experiência. Ainda guarda medos e receios dos seus tempos de prostituição. Medo de comprometer e receio de se expor e sofrer retaliações. Sua maior conquista foi a reintegração na comunidade local frequentando os ambientes que anteriormente jamais sonharia. Tinha o maior orgulho de assistir missas, comungar e participar da irmandade do Coração de Jesus, ser recebida nas casas, sentar nas calçadas, falar com todo mundo.
Eu não quis publicar este material antes da sua morte para evitar que ela fosse assediada com perguntas, comentários e brincadeiras maliciosas.
Júlia é uma pessoa como qualquer outra. Teve amores, desafetos, dificuldades, alegrias, tristezas, medos. Mas tem uma qualidade rara. Júlia se respeita e vem daí minha maior admiração por ela.
MLUIZA
Obs: A contextualização política local - do texto a seguir - não seria possível sem a colaboração valiosa de José Henrique Silva e Flávio Lúcio Bezerra de Oliveira, memórias privilegiadas, fontes que muito tem ajudado, em vários momentos, na construção do blog

JULHINHA

Em Cedro, Júlia conhece um homem de Baixio, gente de destaque no pequeno povoado. Apaixona-se, larga tudo e vem atrás dele. Lembra-se que chegou ao Baixio, mais ou menos quinze dias, antes do assassinato do dentista Líbio Brasileiro, filho de Cícero Brasileiro, chefe político local. Eu prometi para ela não revelar esse segredo, mas tantos anos depois eu já posso, sem constrangimento, dizer que o motivo de sua ida para o Baixio foi justamente a sua paixão por Líbio Brasileiro. Toda a família de Líbio já faleceu, esposa e filhos. Já não há razão para segredos.
Tentando saber um pouco sobre o Baixio daquela época, consultei duas fontes (Zé Henrique e Flávio Lúcio) e as informações oferecidas por ambos, compatíveis e complementares, são publicadas a seguir.
O jovem dentista, Líbio Brasileiro, quando terminou seu curso superior foi trabalhar na cidade de Uiraúna, Paraíba, e logo depois se mudou para a cidade de Cajazeiras instalando seu consultório na Praça João Pessoa. Cajazeiras, principal centro comercial e intelectual do sertão da Paraíba, mantinha uma expressiva influência sobre as cidades do Ceará que ficavam ali por perto.
Era dezembro de 1953. A política pega fogo porque está no auge a luta pela transferência da sede do município de Baixio para Ipaumirim. Na ocasião, acontece a ordenação de Padre Holanda, filho do Baixio, que escolhe a terra natal para celebrar sua primeira missa. Seu pai, convida Cícero Brasileiro para paraninfar a cerimônia. O político estava em Fortaleza lutando contra a transferência da sede do município proposta por Dr. Francisco Vasconcelos de Arruda e seus correligionários políticos de Ipaumirim. (Você pode encontrar mais informações sobre a transferência da sede do município no artigo “A reforma administrativa de 1953”, de Mozart Soriano Aderaldo, publicado na Revista do Instituto do Ceará. (Disponível no seguinte endereço: www.institutodoceara.org.br/.../1953/1953-ReformaAdministrativade1953.pdf ..)
Diante da impossibilidade de comparecer ao evento religioso, Cícero Brasileiro telegrafa para o seu filho, Líbio, pedindo-lhe para representá-lo na solenidade. Líbio chegou ao Baixio por volta de 6h. Quando o Padre Manoel Carlos de Morais, vigário da comunidade, soube da sua chegada, avisou imediatamente a Dona Doca, mãe do rapaz, que não aceitava a presença do seu filho na cerimônia por ele ser maçom. Líbio juntou-se com Otílio que era alcoólatra (não sei o sobrenome dele mas os mais antigos conhecem, ele era o marido de Adautiva, famosa costureira de Ipaumirim, genro de D. Aurora) e passaram o dia bebendo num bar. Por volta das 18horas, chega um soldado novato, vestido à paisana e começa uma confusão que terminou com o soldado baleando Otílio e matando Líbio Brasileiro.
Líbio é retirado às pressas da cidade para Cajazeiras e, no caminho, passa na farmácia de Ernani Dore, em Ipaumirim. Dona Maria Leite da Nóbrega, esposa de Luiz Leite da Nóbrega, envia para a farmácia vários lençóis para envolver o jovem ferido que perdia muito sangue. Luiz Leite da Nóbrega e Cícero Brasileiro eram inimigos políticos e, naquela ocasião, estavam em lados opostos da ferrenha batalha política local. Não foi esta a única vez em que a solidariedade entre os dois foi maior que suas diferenças políticas. Luiz Leite foi prefeito eleito de Baixio nas eleições de 1947.
Na época do assassinato, surgiram versões diferentes. No lado político de Cícero Brasileiro dizia-se que os adversários teriam encomendado a morte com a intermediação de Joaquim Farias. Estes, por sua vez, afirmavam que a morte não tinha um componente político e que a fatalidade ocorreu em função de um desentendimento típico de mesa de bar, o que acabou se consolidando como a versão definitiva.
No meio de toda esta confusão política, Júlia perde a chance de concretizar sua paixão e estabilizar-se em Baixio. Vai embora para Ipaumirim. Até então sua vida corre, de estação em estação, nos trilhos da rede ferroviária. A partir daí, sai dos trilhos para as estradas poeirentas do sertão cearense.

Mulher da vida

Sim! Eu sou sim
uma mulher da vida
E tu?
Por acaso és da morte?
(Edir Pina de Barros)


Chegando em Ipaumirim, instala-se no cabaré de Roxa e Cesarina pagando uma diária de $ 15,00 com direito a um quarto dentro de casa, café da manhã, almoço e jantar. Ela não lembra com exatidão mas o preço médio dos encontros dava para pagar o quarto e economizar alguma coisa. Às vezes, os mais abastados pagavam um pouco mais e ela ia juntando seu dinheirinho. Algum tempo depois, foi ao Cedro buscar os seus pertences.
Nessa época, haviam , mais ou menos, umas cinco mulheres fixas, que moravam dentro da casa de Roxa. Os quartos avulsos, externos, eram para as mulheres que vinham de fora nas ocasiões de maior movimento. Geralmente, elas vinham de Cajazeiras e se distribuíam entre os cabarés de Cesarina e Ginu Veloso. As festas tinham muitas arruaças, mas ela não lembra das mortes. Só fala da morte de Pedro Brilhante, antes dela chegar, no cabaré de Ginu.
A hierarquia interna dos cabarés determinava a distribuição das mulheres pelos cômodos da casa. As mais importantes, mais procuradas, ficavam nos quartos melhores e mais asseados. Geralmente os da frente. As demais se distribuíam nos quartos do fundo. Só tinham três quartos de tijolos, o resto era de taipa. A cama era patente e o colchão de junco. Com o tempo, já instalada em sua casa, Júlia teve um colchão de molas que comprou de D. Esmerina, mulher de mestre Paulo. Essa aquisição fazia a diferença.
Algum tempo depois (Júlia acha que foi em 1954), ela monta seu próprio cabaré que passou a administrar com “mão forte”, como ela mesmo diz. Alugou uma casa de Antônio Piaba. Ao lado, tinha um pé de cajá que ela logo mandou cortar porque juntava muito bêbado. Recebia clientes também durante o dia e com isso aumentava a clientela. Cesarina sempre preferia o atendimento noturno e no cabaré de Ginu tinha muita bebedeira entre as mulheres, o que atemorizava os que exigiam mais discrição para suas travessuras. Quando Ginu deixou, ela começou a fazer festa aos domingos.
Pagava a licença da festa ao delegado que enviava alguns soldados para inibir os excessos quando necessário fosse. Zé Felinto, suplente de delegado, exerceu essa função algumas vezes. Por fora, sempre tinha um agrado para os soldados.
Todo domingo, dia de feira, tinha um forró que atravessava o dia e entrava pela noite. Júlia mandava buscar Tigre Negro, um forrozeiro de Cajazeiras, e mais algumas mulheres para reforçar o movimento.
As mulheres de Cajazeiras dançavam gafieira muito bem e os homens gostavam. Na festa de domingo todas tinham que usar anágua para dar mais volume ao corpo.
A bebida era resfriada num tanque de água com pó de serra, sal e areia que elas ficavam aguando para não esquentar. Uma vez, tiveram que se abastecer de Biotônico Fontoura na farmácia de Parnaíba, em Baixio, porque faltou Cinzano na cidade. O tira gosto era codorna, nambu, rolinha e galinha.
Júlia administrava o bar, a cozinha e as mulheres. O bar era a principal fonte de renda. Num certo domingo, Júlia sentiu uma forte dor de dente e foi ao consultório de Luídio Barbosa que lhe arrancou doze dentes de uma só vez. Júlia nada sentiu e voltou para casa para cobrar a cota e administrar a domingueira. A cota da dança era 5,00. Na segunda feira, seu companheiro, Prato de Barro, ia trocar o dinheiro na loja de Zé Macedo.
Durante a semana , os frequentadores resumiam-se aos homens da cidade.
Seguindo a tradição, dentro da sua casa, só deixava dormir mulher de confiança para receber clientes diferenciados. A bagunça ia para os quartos de fora. Às vezes, apareciam mulheres muito pobres. Júlia não lhes cobrava o uso do quarto mas estas, principalmente, não podiam prestar serviços a homens lisos para o prejuízo da casa não ser maior.
Nas redondezas havia um poço onde elas iam, à noite, banhar-se com os homens. A moral do cabaré não permitia sexo grupal. Todos juntos, mas sem maiores estripulias. As práticas sexuais mais ousadas eram sigilosas porque desmoralizavam a casa. Podiam acontecer, sim, mas muito discretamente. Poucos buscavam. Além de secretas, eram bem mais custosas. Sexo oral era a mais cara. As mulheres tinham muito medo de pegar doenças por via oral inclusive através do uso comum de utensílios, como copos e pratos, utilizados pelos seus apreciadores. A louça utilizada por eles era discretamente marcada e lavada posteriormente, mais de uma vez, com água e sabão e a seguir escaldada. Esse procedimento se repetia sempre cada vez que o cliente visitava a casa.  
Homossexualismo feminino, embora pouco comum, também já acontecia no circuito da prostituição.
O machismo era a lei. Os homens batiam quando estavam bêbados. Passavam muito ‘xexo’ e quando elas reclamavam, eram humilhadas e apanhavam. Depois que eles se serviam, saíam esculhambando. Elas tinham medo inclusive de dizer de quem estavam grávidas com medo de apanhar. Para evitar gravidez, as mulheres tomavam água de sal após os encontros. Também acreditavam que o asseio das partes íntimas com permanganato eram um contraceptivo eficaz. Não podiam faltar as garrafadas feitas com jarrinha, cabeça de negro e cabacinha. Quando não funcionavam, elas partiam para a injeção abortiva. Muitas mulheres morriam de aborto nos cabarés das redondezas. Quando persistia a gravidez, elas ficavam na “vida” até a criança nascer. Acreditavam que a atividade sexual constante amolecia a carne e facilitava o parto. Mas havia uma restrição: as relações eram sempre de lado para não maltratar o intestino.
Muitas doenças apareciam. Entre elas, cavalo de crista, cavalo liso, cavalo de buraco e ainda o insistente chato que era tratado com Neocid, conhecido remédio para matar piolhos. O chato era uma praga e dava até nos cílios. O farmacêutico Ernani Dore sempre as atendia em suas enfermidades.
O cabaré tinha suas regalias. A roupa era lavada por Olindina, Maria Santana e Maria Antônia. A empregada chamava-se Lourdes de Antônio do Monte, uma mulher madura que cuidava das lides domésticas e, vez por outra, era cantada pelos frequentadores mais jovens.
Época de férias estudantis eram sempre divertidas. A rapaziada tinha muito humor e muito tesão. Só não tinha dinheiro. Era preciso negociar, reconsiderar a tabela de preços e os critérios de pagamento. As coisas se arranjavam da melhor maneira. Para a mulher não ficar no prejuízo total, Júlia não lhe descontava o almoço. Ficavam todos satisfeitos. Júlia ampliava e fidelizava a clientela na base da camaradagem.
Os clientes eram sempre os mesmos mas as mulheres eram nômades, viviam se mudando de um cabaré para outro. Chegavam trazidas por caminhoneiros ou pelos homens da própria cidade. As novatas eram levadas para a rua para atiçar a clientela. Carne fresca no pedaço era lucro certo. Menina muito nova podia ser moça (virgem) e dar problema, era preciso comunicar antes ao sargento, policial de mais alto escalão destacado na comunidade.
As instruções eram praticamente um decálogo ao qual todas deviam submeter-se enquanto estivessem na casa:
- Tratá-la por Dona Julinha e obedecê-la em todas as ocasiões e circunstâncias;
- não se apaixonar. “Uma mulher da vida não tem direito de amar, o que elas precisam mesmo é ganhar dinheiro para brincar e gastar no Crato e no Juazeiro.”
- andar sempre cheirosa e bem vestida
- não contrair dívidas nos estabelecimentos comerciais da cidade. Os tecidos eram comprados na loja de Zé Macedo. Perfumaria e demais artigos de toucador eram comprados na mercearia de Dona Cristina Lemos. Segunda feira era dia de pagar as contas.
- manter o preço e o tempo convencional do encontro, fixado pela normas da casa. “Só as cachorras passam a noite inteira com um só companheiro pelo preço de uma única vez.”
- sair só com sua autorização.
- respeitar a polícia e nunca desafiar o delegado. Mesmo quando este as liberava para sair às ruas, elas não podiam sair embriagadas. Cachaça de rapariga tem que ser no cabaré. Na rua, não.
- ser discreta pra não perder o freguês.
Não era fácil administrar o cabaré. As mulheres sempre achavam um jeito de transgredir as normas da casa. Quando uma delas usou calça comprida e a saiu andando de bicicleta, a cidade entrou em polvorosa e Júlia foi intimada à delegacia. Elas ameaçavam os homens e mandavam bilhetes exigindo seu comparecimento. Para driblar as esposas dos infiéis, faziam um jogo de troca de mulheres com o cabaré do triângulo. Para complicar, algumas se apaixonavam e entravam no prejuízo.
Pergunto à queima roupa:
- Existe algum homem dessa cidade que você não ficou com ele?
- Eu nunca fiquei com prefeito. Só com vereador, responde sem titubear.
- E da rapaziada, quem você batizou?
- Nenhum com menos de dezesseis anos, responde ela. Nunca fui muito chegada a menino.
- E os amores?
- Muito poucos. Alguns eu gostava mais porque eram amigos e me ajudavam muito.
Os amigos eram os clientes dos discretos atendimentos a domicílio que aconteciam esporadicamente onde ela entrava pela porta dos fundos quando as esposas não estavam em casa. Muitas vezes, ia de jipe fretado para municípios vizinhos.
 20.08.220Julia não gostava muito de ir a festas em casas alheias apesar de lembrar com saudades das festas do Icó. Mas as melhores lembranças são daquelas que ela mesma promovia. O seu olhar brilha e sua risada maliciosa toma conta da conversa enquanto ela vai desfiando as lembranças.
- Eu sempre fui vaidosa. Gostava de comprar perfume na bodega de Dona Cristina Lemos. Casa Branca (blanca?), Itamaraty e Turbilhão, da Coty, que era o meu preferido. Era a mais disputada e tirada para dançar. Os homens podiam ficar com outras mulheres mas dançar era comigo. Os homens adoravam dançar comigo. Parece que era um imã que eu tinha, diz orgulhosa.
Convencida dos seus atributos e artimanhas, ela rejuvenesce, descontrai e mergulha no que de melhor aconteceu em sua vida. A cumplicidade feminina nos permite boas gargalhadas.
- Tinha gente que até fazia serenata para mim lá na ponte. Nunca fui muito de me apaixonar mas eu era muito quente, diz com desenvoltura e naturalidade.
Aproveito a descontração e pergunto o perfil da sua clientela.
- Tinha gente que gostava de botar mulher para brigar. Outros davam a vida por uma mulher nova e geralmente eram os mais explorados. Os mais conceituados da cidade entravam pela porta dos fundos para não chamar a atenção. Tinha gente que vinha armado mas eu sempre conseguia desarmar. Já guardei revólver até dentro das calças
- E seus filhos, Júlia?
- Meus filhos nunca me viram beijando ou sentada em pernas de homem. Elza tinha a vida dela mas morava na casa de Zefa Morena. Seria muita falta de respeito ela morar comigo. Eu tenho temor a Deus.
Júlia ficou na vida enquanto acreditou no seu poder de sedução.
- Depois dos 60 anos fica mais difícil. Com essa idade, mulher não deve transar porque adoece. Os homens podem. Além do mais, eles só procuravam mulher velha quando gostavam de sacanagem. Mulher velha em cabaré é horrível. Fica desmoralizada.
Considerando-se velha para o ofício, Júlia saiu da sua casa e foi morar no triângulo, área de prostituição um pouco mais distante da cidade, onde botou uma pequena venda para ajudar na sobrevivência. De lá, foi para Icó e depois para Brejo Santo mas já não tinha cabaré. Vivia de um pequeno comércio.
Depois, voltou para Ipaumirim e foi morar lá pras bandas da antiga Rua da Matança. Foi aproximando-se da comunidade e estabelecendo uma nova relação com as pessoas. Primeiro, com os mais humildes na periferia da cidade. Aos domingos, frequentava a reunião dos idosos numa casa no centro da cidade, defronte ao largo da matriz, onde hoje, funciona uma escola ou creche. Começou a frequentar também a igreja católica. As mulheres olhavam de soslaio.

- Eu tinha vergonha porque não podia comungar. Pequei grande, morei num cabaré. A gente pode pecar e fazer o diabo, mas sempre tive temor a Deus. Mesmo na vida, eu nunca dormi nua. Esse pecado não levo a Deus. Sempre rezei. Sempre acreditei em Deus e rezei pra Nossa Senhora. Me confessei com o padre, com o bispo, falei com Frei Damião e criei coragem. Para mim, aquele tempo se acabou e se enterrou de funda abaixo. Só tenho saudade da minha saúde. Hoje, eu só espero a morte.
- Você tem medo de morrer?, pergunto.
- Não mas eu só quero morrer quando Elza se aposentar porque não posso deixar minha aposentadoria pra ela.
- Qual a melhor coisa da vida? pergunto-lhe para encerrar nossa longa conversa.
- Dançar, responde Júlia.
Abraço-a e prometo não citar nomes. À noite, encontro as duas, Júlia e Elza, vindo, juntas, da missa de passagem do ano.
MLUIZA
Ipaumirim – CE

A entrevista com Júlia foi realizada em três encontros no fim de dezembro de 2002. Publicada em partes no alagoinha.ipaumirim nos dias 30/08, 06/09 e 19/09 de 2009



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EDMILSON QUIRINO DE ALCÂNTARA: A LEMBRANÇA ALEGRE DE QUEM TEM APREÇO PELO TRABALHO QUE REALIZA.

Conversar com Edmilson é sempre muito agradável. Apesar da memória já comprometida ele adora falar sobre sua experiência como dono de bar....