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MLUIZA |
‘MENINOS,
EU VI”
E à
noite nas tabas, se alguém duvidava,
Do que ele contava,
Tornava prudente: “ — Meninos, eu vi!”
(I-Juca-Pirama,
Gonçalves Dias)
Enquanto
espero a apuração começar lembro das eleições em IP nas décadas de 50 e 60. Dia
de eleição, para mim, é sempre um dia alegre, menos este dia de hoje por conta
das tensões envolvidas que transformaram minha alegria em apreensão. Votar é a chance que eu tenho de escolher quem
vai governar o país e, de quebra, a vida de todo mundo. Naturalmente, a ação do
governo é mediada por alianças e acertos. A questão é com quem e a partir de que
estes serão feitos. Com a Câmara eleita para esta legislatura a dificuldade
será infinitamente maior. Além dos oportunistas de plantão somam-se os novatos
aventureiros que jamais alcançam o sentido e a importância da política.. Mas
não é sobre isto que quero falar. Quero falar um pouco das minhas remotas lembranças
das eleições em IP.
Na
noite anterior ao dia da eleição havia uma movimentação intensa dos políticos
checando detalhes. Dormíamos tarde porque no dia seguinte era preciso madrugar.
Tinha gente que nem dormia. Era um entra-e-sai de políticos e eleitores na casa
de meu avô. Acertavam-se os preparativos. Checavam-se as seções, as listas de votantes
de cada uma delas, o transporte e a comida para os eleitores no
dia seguinte. Enquanto preparava-se a logística do dia seguinte, nas ruas do
minúsculo povoado brotavam os boatos e reinavam os fuxicos e as apostas.
A
dificuldade de transporte era grande. Contava-se apenas com os poucos jipes
particulares, eventualmente uma camioneta e um ou outro caminhão. Cada veículo
naturalmente só levava os que votavam no seu partido. A maioria vinha mesmo a
cavalo. Lembro que muitos amarravam os animais na rua atrás da casa do meu avô.
Deixavam selas e arreios no nosso quintal e na mesa posta com antecedência tomavam
café da manhã. Muitos voltavam para o almoço. A circulação intensa dentro de casa não nos
causava estranheza. Estávamos acostumados
com casa cheia todos os dias. A grande maioria dos eleitores do povoado,
entretanto, comiam num determinado local onde a corrente política a qual
estaria vinculado oferecia as refeições. Lembro demais desses locais. Comida sertaneja
era servida à vontade em mesas improvisadas. Impressionava-me o tamanho das
panelas.
Num
eleitorado tão pequeno conheciam-se todos os votantes. Pelo nome dos eleitores, um político
experiente sabia quantos votos cada candidato teria em cada seção para
presidente, deputado federal e estadual, senador, governador, prefeito e
vereador. Meu pai conhecia profundamente a psicologia do eleitor e, de longe,
detectava os que diziam que votavam num candidato e votavam em outro. A
pesquisa da época era a consulta antecipada à lista de votação. A prosaica
metodologia aplicada era saber quem é quem e conhecer as matreirices de cada um
deles. Pela lista, sabia-se quantos votos teriam este ou aquele candidato. O
primo Adolfo também tinha uma habilidade
ímpar em projetar os resultados por seção. A margem de erro era quase zero.
A
questão fundamental da política interiorana
era e ainda é a preocupação com eleição local, o resto era desdobramento. O
horizonte restrito continua reduzido prioritariamente a prefeitos e vereadores.
Eram estes os conhecidos dos eleitores e eram eles os que atendiam de forma
mais imediata às suas necessidades. Os demais, principalmente deputados e
senadores, iam a cabresto. Conheciam-se uns pouquíssimos deputados estaduais
que andavam por lá no intervalo entre eleições. Entre eles, Dr. Arruda foi uma
presença marcante. Dr. Almir Pinto também ajudou muito a cidade através do seu
parente e concunhado Adolfo Augusto de Oliveira. Deputado federal às vezes aparecia rapidamente
no período de eleição. Eram conhecidos pelos santinhos de propaganda que
traziam a sua foto e o nome do partido distribuídos na antevéspera da eleição. Não lembro de ter visto algum senador nas
campanhas políticas. Muitos destes políticos só são lembrados porque viraram
nome de rua. Não deixaram um legado expressivo que marcasse a memória política.
Na
prática, a atividade política local estava restrita à campanha eleitoral. A maioria nem identificava os partidos. Sabia-se
apenas a liderança local que os representava. Assim sendo, era o partido de
fulano ou sicrano. Montava-se uma operação de guerra para industriar o voto
entre uma maioria de eleitores completamente analfabetos. Ousiders da política,
eles votavam. Dever cumprido e pronto.
Eu
gostava mesmo era de ver o movimento da rua no dia de eleições. Era um dia bem
animado. Com o intenso movimento ninguém se preocupava comigo. Eu passava o dia
andando pra lá e pra cá, de seção em seção e via aquele ruge-ruge de pessoas
que nem era tanta gente assim porque o eleitorado era pequeno, mas para uma
criança era gente demais. A eleição era um evento mais animado que a festa da padroeira. Sempre
achei o máximo ser eleitor tanto que meu pai fez para mim um título
datilografado do modelo do título original que eu ainda hoje guardo com carinho
porque eu queria porque queria ser eleitora mesmo sem votar.
Meu
avô e meu pai adoravam política, mamãe detestava. Ela dizia que a porta da sua casa
estava aberta para todo mundo, menos para eleitor. No dia da eleição papai
contava com a minha cumplicidade. Entregava-me as sacolinhas que os eleitores
portavam com seus pertences e eu as escondia no meu quarto embaixo da cama para
mamãe não ver.
Uma
ocasião em que meu pai estava cotado para ser candidato a prefeito, mamãe bateu
o martelo:
- Aqui
em casa o prefeito entra por uma porta e eu saio pela outra. Só volto depois do
resultado da próxima eleição. Vice-prefeito eu aguentei. Prefeito não. Já
bastou meu pai.
Naturalmente,
abortou a candidatura de papai. Mas ele seguiu na política. Era um apaixonado.
Mamãe dizia que ele era cheleléu de eleitor, acabava com as reuniões políticas
lá em casa. Quando chegava um grupo de políticos, ela descartava a reunião
antes mesmo de começar.
- Se a
reunião não for de política fica aqui mesmo e é bem-vinda. Se for de política
vão fazer na calçada da igreja. Aqui não.
As
campanhas eram um estresse dentro de casa, um clima totalmente diferente da
casa do meu avô. Para não inflamar, papai tirava tudo por menos, mas fazia o
que queria.
Para
piorar o clima tínhamos uma dissidência política dentro de casa. O guarda da nossa
loja chamava-se Manuel Fon-fon porque tinha uma voz anasalada. Manoel era um
mix de vigilante e cobrador. Como vigilante, sua arma era um cacetete. Como
cobrador, ficava encabulado quando era bem recebido e não tinha coragem de
cobrar o débito. Fazia as refeições junto com a gente lá em casa. O problema
era que ele e o meu irmão pequeno eram do partido adversário. Toda hora de
refeições tinha uma confusão na mesa por conta de política. Manuel sinalizava o
tema, meu irmão pegava gás e começava a guerra. Ou vice-versa. Mamãe ficava irada. Papai, para acabar com a
confusão, comprou o apoio político do meu irmão com um brinquedo que ele andava
interessado. Ele virou para o nosso partido, mas Manuel Fon-Fon ficou do outro
lado. A confusão da mesa não acabou. Se antes eram eles contra nós, a partir de
então a guerra ficou ferrenha entre os dois. Papai ficava olhando e rindo
aquele quadro inesquecível. Só acabou a
briga depois da eleição. Nosso candidato ganhou.
Quando
votei a primeira vez usei uma linda roupa de crochê. Era a estreia de um sonho
e eu precisava uma roupa bonita para me apresentar à minha condição de cidadã. Votei
apenas uma vez em Ipaumirim. Logo transferi meu domicílio eleitoral sem a menor
objeção por parte de papai. Eu não poderia votar lá porque os sentimentos se
misturavam com as escolhas políticas e eu queria outros critérios para decidir
meu voto. Ali, eu jamais votaria contra o partido do meu pai. Eu queria ser
livre para escolher. E continuo sendo leal comigo mesma.
Eu não
voto por amizade, por parentesco, por atenção, por desatenção, por despeito, para
auferir vantagens, pagar favores ou quitar mágoas. Nenhum critério subjetivo
orienta meu voto. Ele é o único
instrumento legal que eu tenho para opinar na condução política do país. Voto
pelo alinhamento que eu tenho com as propostas do candidato. No mais, eu me dou
bem com todo mundo, respeito as decisões de cada um, mas tenho um profundo
desprezo pelas intenções que movem certas escolhas.
MLUIZA
Recife, 30.10.2022