Meu pai, Vicente Gomes de Morais, na calçada da igreja |
Depois de meio dia a feira sempre esfriava um pouco o movimento. Papai sentava num banco alto dentro do balcão e entre um cliente e outro ficava proseando. Bosco Crispim, funcionário da loja cujo apelido era Horácio por conta de um tocador de fole que era vesgo igual a ele, ficava debruçado no balcão fumando seu cigarro Continental sem filtro. Mamãe no caixa fazia as contas do dia. Os moradores de papai iam chegando e ficavam por ali conversando aguardando a hora de voltar pra casa. Era o momento da prosa e da leitura de cartas que vinham principalmente de São Paulo dando notícia dos que migraram. Ficava todo mundo conversando, papai orientando alguns sobre os serviços de rotina que deveriam ser feitos durante a semana. Daqui a pouco papai ia deixá-los no Sítio Umarizeiro e ainda levava outros que não eram seus moradores mas que viviam nos sítios que ficavam ao longo do caminho. Alguns já tinham partido nos seus burros abastecidos com as coisas compradas na feira. Outros bicados pela cachaça ficavam por ali no meio da prosa. Papai adorava aquela conversa domingueira. Era também a hora deles se queixarem de algumas ocorrências que não eram de seu agrado. Alguma coisa era resolvida ali mesmo junto de todo mundo. Outras, papai ia para a outra ponta do balcão quando o assunto era mais delicado. Bem humorado, tinha uma habilidade ímpar para desmontar situações complicadas. Seu balcão funcionava como uma espécie de confessionário.
Um dia, papai percebeu a inquietação de um morador. Entrava e saia da loja e não achava hora nem canto para desabafar. Papai inventou uma desculpa e o chamou ao lado.
- O que é que tá acontecendo com você, rapaz?
- Seu Vicente, eu tô muito desgostoso, responde ele.
O desgostoso era um moço jovem, bem apessoado, casado e tinha fama de conquistador afoito. Papai vivia recebendo queixa dos seus enxerimentos com casadas e solteiras.
- Me conte a razão do desgosto.
- É o seguinte, seu Vicente. Eu ‘sube’, hoje, aqui na feira, que tão dizendo por aí que Toinho de Mané de Alzira tá namorando com minha mulher e isso não vai dar certo.
No interior daquela época – e ainda hoje – todo mundo é de alguém ou de algum lugar. A preposição ‘de’ é soberana, anuncia o pertencimento. Quando se refere à descendência é o elemento transgeracional que permite uma identificação inquestionável. Na prática, isso se sobrepõe à validade de qualquer documento oficial. É único e inconfundível.
Papai escutou a queixa e calmamente lembrou-lhe os seus pecados.
- Quinco, você se lembra quando você namorou com a mulher de Chico da burra preta?, lembrou papai.
Ele, calado, começou a murchar.
- E quando você estava com enxerimento com a filha de Biliu no forró na casa de Manuel bem-bem? E aquela vez que você ficou tirando graça, aqui mesmo na feira, com a mulher de Ciço de Santa Helena? E na festa de São Sebastião que você bebeu e ofereceu uma música para a mulher de Tião da gaiola, lá de Umari, na difusora da Barraca da Confiança? A sua lista é grande.
- Mas, seu Vicente...
- Isso é para você aprender como é bom ser corno! Trate de se aquietar que muito mais os outros tem pra dizer de você. Sua mulher é direita e em vez de escutar conversa vá pra casa descansar que o povo dessa feira é muito conversador. Essa semana vai ser todinha só pra arrancar toco. Vamos lá que o povo tá esperando.
- Vão logo subindo na camionete que tá ficando tarde. Eu vou passar lá em casa, tomar uma água e já volto.
As mulheres se apertaram na boleia e os homens com seus sacos espremeram-se na carroceria.
- Tudo certo? Tá faltando alguém? pergunta papai.
- Não, vamos s’imbora seu Vicente.
- Pronto. Vamos logo que eu ainda vou passar na cadeia pra pegar os ‘bebos’ que tão presos. Alguém sabe quantos foram presos hoje?, pergunta papai.
- Hoje, só dois, Chiquinho de Zezé de Mariinha e Antôin de Sinhá.
- Tem mais um que vocês tão esquecendo, Batoré de Joaquinzin, grita uma mulher lá do aperto da boleia.
A camioneta vai ‘pensa’ de tão lotada e papai no volante com toda aquela paciência e bom humor que o fez querido por todos.
MLUIZA
Recife, 09.01.2021
(Os nomes são fictícios mas as situações são reais)
Imagem: papai na calçada da igreja. Foto do meu arquivo pessoal.
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