Como o movimento doméstico triplicava quando ele estava por lá, fez-se costume deixar a mesa semi pronta com a louça posta no dia anterior para o café da manhã do dia seguinte. Lembro que, na época, mascar chiclete de bola era nossa diversão. De tarde, a gente tomava banho, trocava de roupa e chupava chiclete. De noite, guardávamos atrás das portas o chiclete do dia que junto com o do dia seguinte dava para fazer uma bola imensa. A disputa era para saber quem fazia a maior bola.
Uma vez, achamos de esconder o nosso tesouro justo embaixo das xícaras de forma que no dia seguinte quando as pessoas chegaram para o café da manhã tiveram a grata surpresa de descobrir grudado nos seus pires o chiclete mastigado. Este foi o esconderijo perfeito para guardar nosso tesouro. Afinal, atrás das portas já era lugar bastante manjado, desprotegido e sujeito ao confisco tanto pela meninada da casa quanto pelos adultos quando faziam a limpeza diária. Vovó ficou morta de vergonha da nossa falta de educação mas ninguém reclamou da nossa peraltice. A não ser vovó, é claro.
Arruda deu-me talvez o melhor presente da minha infância: a coleção ‘O mundo da criança’. Composta de quinze volumes, a obra acompanhava a evolução e os interesses da criança até a adolescência. Consegui ao longo do tempo ler todos os livros, mas foram os três primeiros os grandes companheiros da minha imaginação. O volume um trazia os poemas da primeira infância. No volume dois estavam as histórias contadas e outros poemas com textos mais longos. O terceiro trazia histórias de fadas. Ainda hoje lembro das imagens. Outro dia, até procurei na internet e revi algumas, todas lindas, mas não encontrei a que mais me seduziu e que integrava o primeiro livro. Era um pequeno poema sobre uma casinha no oco do pau. Eu brinquei, vivi, morei, fiz viagens imaginárias, construí um mundo particular na sugestiva casinha. Experimentei tudo o que pode a imaginação infantil naquela composição de texto e imagem. Eu varria, cuidava, limpava, cozinhava, brincava com a menininha. Não havia limites para as nossas aventuras. Horas éramos companheiras, saíamos a passear e depois voltávamos para nosso lar comum. Outras horas, éramos a mesma pessoa no mais pleno e livre exercício de transmutação do qual só é capaz a imaginação infantil. A descoberta da capacidade de atravessar sem medo as estruturas do real é embriagadora e inesquecível. Talvez a grande sabedoria da vida seja aprender a não submeter a imaginação aos rígidos códigos do real pois que é lá um lugar de refrigério que pode guardar o sonho um dia realizável.
Desde pequena acostumada a ler aqueles áridos livros infantis sem figuras e sem graça vim descobrir neste valioso presente não apenas a sedução da imagem mas sobretudo o deslumbramento da poesia. Acho que isto explica o encanto especial pelos bons livros de literatura infantojuvenil que me acompanha a vida inteira. Devo isto a Arruda. A ele, meu mais sincero agradecimento.
MLUIZA
Recife, 14.01.2021
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