AKI LEMBRANU: SENTINELAS DO SERTÃO

 

MLUIZA

Só quem nasceu e se criou no sertão de antigamente sabe o que é uma sentinela. Atualmente, caíram em desuso as palavras morte, enterro e sentinela. Para dourar a pílula, elas foram ressignificadas e se popularizaram os termos falecimento, sepultamento e velório. Fica mais delicado, abranda o sentimento e dói menos.

Embora fosse coisa de adulto, nelas não faltavam crianças e eu, naturalmente, gostava de participar porque tínhamos mais tempo para brincar na rua nas calorentas noites do sertão. Não precisava dormir cedo e isso já era ótimo Mesmo nas noites sem lua, o céu estrelado do sertão alumiava a escuridão noturna. Dentro de casa, a chama das lamparinas espantava o escuro.

Não lembro ter visto incelenças ou carpideiras. Mas vi muita reza e muito choro. Defunto sem choro era um escândalo. A expressão exacerbada da dor promovia uma catarse coletiva. A família chorava e a mulherada presente fazia coro. Às vezes, parecia um jogral. Podia faltar tudo, menos choro e café. Algumas serviam sopa. À parte, dedilhava-se sem cerimônia o terço e a vida alheia. Mulheres especialistas em tirar o terço revezavam-se durante a vigília.

Na cozinha, os bules fumegantes de café. Na sala, o choro e a reza. Na calçada, entre rodadas de café, a conversa rolava. Uma sentinela animada garantia presença até o dia amanhecer. Sentinela triste esvazia na hora. Embora a estrutura fosse a mesma jamais existiu uma igual a outra. Presenciei situações inusitadas. Lembro de muitas mas selecionei apenas algumas para não alongar o texto. Numa delas, uma neta da falecida, escandalizou a cidade. Tomou um belo banho, botou perfume, vestiu camisola e robe e foi sensualizar na calçada de casa pra cima de um gordinho que era presidente do clube social da cidade. Resulta que a sentinela rendeu. Na expectativa do desfecho todo mundo varou a noite.

Outra ocasião, foi um vexame. A defunta no caixão e quando o terço vai começar, descobriram suas unhas pintadas de vermelho. Foi um horror. Parou tudo e foi uma correria atrás de acetona para tirar o esmalte. Só depois disso, começou o terço. Eu jamais imaginei que tinha problema enterrar alguém com as unhas pintadas. Descobri aí que isto fazia parte do protocolo.

As mortalhas eram um número à parte. O figurino masculino era mais discreto. Calça e camisa, paletó e, algumas vezes, rolava um traje de São Francisco. A mortalha feminina tinha lá suas exigências e detalhes. As casadas e viúvas vestiam roupa de santa. Nossa Senhora e Santa Terezinha eram as preferidas. As que morriam solteiras, presumidamente virgens, vestiam traje de noiva. Com direito a coroa. Algumas tinham até buquê. Tudo muito simples e singelo mas obedecendo as regras do figurino. Em qualquer situação, a mortalha tinha que ter sete metros de tecido. Até hoje, não consegui entender essa simbologia dos sete metros embora tenha passado várias horas durante uma sentinela ouvindo explicações de uma costureira especialista em mortalhas que fazia questão de dizer que, na região, era a mais famosa no ramo e portanto a mais disputada. Ela era a única que garantia o uso efetivo dos sete metros. Bom, não sei se as outras passavam a perna no defunto e ficavam com parte do tecido comprometendo o passaporte na entrada do céu.

Quando a minha vó Maria faleceu, tivemos praticamente uma semana de vigília acompanhando sua agonia. O que vivi e vi neste período daria um conto. Quem sabe um dia revisitarei minhas lembranças e contarei detalhes deste processo que se aproxima do realismo fantástico.

Apesar de regadas pela curiosidade popular, a sentinela estava além do prosaico. Ela amenizava a solidão das despedidas. Muitas vezes, isso faz a diferença.

MLUIZA

Recife

27.07.2020

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