ATÉ A MORTE, TUDO É VIDA. (MIGUEL DE CERVANTES)

Jarismar e eu. Foto de Magna Gonçalves.
Desde janeiro do ano passado, estivemos reunidos, Jarismar e eu, percorrendo a  longa travessia das suas memórias. Jáder Santana já tinha escrito um livro sobre sua vida que ele muito gostava. Foi uma edição comemorativa pela passagem dos seus 80 anos. Refletindo, posteriormente, ele achava que algumas  outras informações poderiam ser incorporadas complementando assim o conjunto das suas memórias.  Como já estávamos conversando sobre outras questões de Ipaumirim, combinamos de ir avante em nosso interesse comum onde ele traria novas informações que, por um lado, retomariam algumas questões complementares a obra anterior e outras seriam acrescentadas. A partir daí, começamos nossa caminhada. Mergulhei sem pruridos metodológicos numa prosa agradável e extremamente rica. Mais do que um desfiar de informações factuais, pretendíamos fazer um livro de celebração da vida e do que ela proporciona. Falamos de ideais, desafios, lutas, afetos, equívocos, dores, conquistas e desapontamentos. Passamos um ano nessa viagem.
Foram horas de conversas presenciais e muito texto indo e voltando na rota Ipaumirim-Recife-Ipaumirim até chegarmos ao momento em que ele dava o OK. Com uma lucidez surpreendente para a idade, corrigia cuidadosamente os meus equívocos até chegarmos a um denominador comum que era exatamente o ponto em que ele considerava o texto pronto. Embora tenhamos uma diferença de idade, nossa origem de bases rurais propicia um entendimento sobre o universo comum. Saímos do roteiro todas as vezes que achamos necessário. Falamos sobre as amenidades que dão alma e sentido ao cotidiano. Confesso que às vezes caíamos em tentação e não resistíamos. Quem resiste a uma fofoca ou a uma picardia no momento preciso?   Eram intervalos de descontração e cumplicidade onde ele se permitia alguma irreverência e a gente ria bastante. Ele dizia: - Isso não pode publicar. Nesses momentos, revelava um humor especial que dava um tom jocoso a sua narrativa. Seu temperamento discreto não lhe permitia excessos. Afável no trato, claro no raciocínio, observador atento e narrador detalhista. Sei lá porquê eu sempre errava o nome de uma mesma pessoa. Ele me corrigia: – Você já errou três vezes esse nome. Foi um pesquisador incansável, buscava informações para enriquecer o texto e estava sempre preocupado em ser politicamente correto. Conversamos sobre muitas coisas, outras tantas não deu tempo.
Em nosso último encontro aprofundamos um texto que ele vinha construindo sobre a família que a vida lhe deu. Avós, pais, irmãos, agregados. Hábitos e costumes. Foi uma conversa muito amorosa onde ele revisitou afetos, o mundo lúdico da sua infância rural, brincadeiras, castigos, culpas, cafunés, sentimentos, expectativas, cobranças, essas  coisas que são o tempero essencial de qualquer cotidiano familiar. Era sobretudo um neto devotado, tinha por seu avô materno muito carinho e respeito, mas a sua avó, Josefa,  foi a grande presença na sua infância. Essa avó perpassou, de uma maneira ou de outra, todos os nossos encontros. Sempre havia um lugar para ela. Ele estava muito emocionado e eu fiquei muito comovida ao compartilhar daquele profundo mergulho afetivo de um homem de 84 anos.  Depois da notícia do seu falecimento foi como se eu tivesse finalmente apreendido o sentido da nossa última conversa.
Na etapa seguinte, falaríamos da família que construiu e das amizades que conquistou ao longo da vida. Havia a preocupação diante a possibilidade de esquecer algum nome. Deixei algumas anotações para ele revisar e corrigir com calma um texto anterior que estávamos encaminhando.  Programei para falar por último sobre política aprofundando certos aspectos que havíamos conversado rapidamente mas que precisávamos explorar com mais profundidade. Ele tinha uma larga experiência política que aponta quando estudante secundarista na cidade do Crato e uma capacidade de negociação muito expressiva na condução de projetos coletivos, era um articulador habilidoso. Tinha clareza de objetivos, paciência para viabilizar estratégias e perspicácia para se mover no jogo político das instituições.  
Eu queria que ele fizesse uma leitura própria da dinâmica da política partidária em Ipaumirim que acompanhou, direta e/ou indiretamente,  durante muito tempo desde quando foi chefe de gabinete na administração do seu pai , Alexandre Gonçalves da Silva, na Prefeitura Municipal de Ipaumirim (1958-1962).  O que motiva, o que modela,  como se dissimulam as intencionalidades e interesses privados nunca publicamente revelados mas que são a base dos acertos e alianças políticas. Sua interpretação lúcida e experiente seria fundamental na composição deste cenário que, aos poucos e sem pressa, venho pacientemente observando ao tentar desnudar e compreender como se expressam os mecanismos que movem a política e o poder em micro municípios sem expressão econômica e quase nenhuma visibilidade política um pouco além de suas fronteiras. Não houve esse tempo. Fica este vazio na interpretação da história política de Ipaumirim.
Mércia, sua filha, foi uma companheira paciente e comprometida em todo o processo. Solicita, preocupada e atenta. A distância e a sua condição de saúde dificultaram o ritmo e a conclusão do projeto, mas ficaram registros importantíssimos da sua obra, da sua vida e do nosso município.
A mim, ficou-me a lembrança querida de um amigo que chegou tarde demais e foi embora mais cedo do que eu gostaria. Ainda havia muito a conversar e mais ainda a aprender.  
MLUIZA
Recife, 21.01.2020.

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