MLUIZA |
Perto de mim, na calçada de uma casa há muitos anos desocupada mora
um invisível. De repente, eles apareceram. Eram inicialmente três.
Armaram sua proteção com um plástico preto e foram ficando. A vizinhança
meio arredia foi-se acostumando. Logo depois, sumiram dois. Um ficou.
Pelos hábitos percebe-se que ele já teve casa. Não sei por onde,
conseguiu uma velha estante, uma cadeira azul, afixou um espelho
quebrado e uma pequena estante de parede onde guarda livros, tintas,
pincéis e cadernos. Passa o dia escrevendo e gosta de pintar quadros com
dizeres de autoajuda. Todos os dias de manhã varre a calçada e o
quarteirão. A rua amanhece limpa. Num Recife sujo e descuidado, quem
sabe ele teria vocação para secretário de limpeza urbana.
Começou
a guardar os carros que de noite ficam na rua e, logo depois, a
lavá-los. Fez uma ligação clandestina e instalou seu lava jato que
atende os que por ali estacionam durante a noite. Passa a noite
trabalhando. Às vezes, bebe, fica um tanto quanto eufórico, mas a
ninguém desacata. Conseguiu uma cadeira de vime, acredito que com um
carroceiro. Assim, já existem duas cadeiras bem cuidadas para os
clientes do dia se sentarem. Quando não está trabalhando, escreve.Na esquina, as pessoas costumavam atirar lixo e entulhos na calçada onde ele se instalou. Pintou na parede: ‘Evite problemas. Não bote seu lixo aqui. ” Pintou também vários quadros com mensagens de autoajuda falando em Jesus e no amor ao próximo. Parece ser um homem de fé, possivelmente um crente esquecido pela teologia da prosperidade.
Sua ligação clandestina fornece água
para manter o lava jato e lavar sua roupa. Conseguiu um danificado varal
de pé que coloca para seca-la junto com suas flanelas de trabalho
estrategicamente num local que não incomode o uso da calçada agora limpa
e sem entulhos, diga-se de passagem. Desconfio que os carroceiros são
seus fornecedores de móveis. Conseguiu uma velha mesinha de plástico onde
se senta para almoçar.
Já tem clientela fiel conquistada através
do velho ‘boca-a-boca. É caprichoso no trabalho e na preservação do
ambiente. Tudo muito limpo. Empreendedor, resolveu ampliar seu negócio.
Botou uma pequena placa anunciando que limpa e lubrifica ventilador.
Quem não quer alguém que limpe seu ventilador?
Logo que chegou só usava bermudas. Passou a usar camiseta. Anda sempre limpo.
Num pedaço de papelão, escreveu a sua publicidade e ancorou num poste.
Não vou dizer o nome e a localização para não identificá-lo. No anúncio
está escrito “THE BEST. 100% QUALIDADE”. Achou pouco e fez mais um
colocando-o estrategicamente na outra esquina e ainda outro, vertical
pintado no poste. Teve mais visibilidade, mas, em compensação, a
prefeitura apareceu querendo retirá-lo para um albergue. Ele argumentou
que não ia porque ali é o seu domicílio e local de trabalho. O
quarteirão ficou indignado com os funcionários da prefeitura. Ele não
foi e ficou tudo do mesmo jeito.
Tem uma namorada que se droga e
lhe roubou o dinheirinho que ganha. No salão de beleza que frequento
funcionárias e clientes são contra esse romance. Não sei se por pressão
da vizinhança o namoro acabou. Descobrimos através de uma cuidadora que
atende a uma senhora do prédio onde moro que é um sedutor. Ele lhe
confiou que tem sete namoradas, todas moradoras de rua que vivem nas
proximidades. Uma em cada rua. De noite, eles pulam o muro da casa
abandonada e vão se divertir. Indiscreta ao extremo, ela perguntou como
ele pode ter tantas mulheres se não tem dinheiro.
- Mulher não gosta de dinheiro, mulher gosta de carinho e isso eu sei fazer, responde ele.
O rapaz se garante. Outro dia, a rua amanheceu com duas delas
engalfinhadas numa antológica cena de ciúmes com direito a ameaças com
faca. Não precisou polícia. Ele neutralizou as duas. Vida que segue.
Num sábado de manhã, a prefeitura reapareceu e, na marra, retirou-o de
seu desajeitado lar. Passou uns dias sumidos. Voltou. Não está
exatamente no mesmo lugar, mas na calçada defronte. Trouxe suas tralhas
que ficam cobertas com plástico esperando a noite para trabalhar. Põe
seu colchão na calçada e dorme como pode embaixo de uma marquise. Outro
dia, eu o vi na antiga calçada lavando carro. Aos poucos, ele vai
voltando ao que era. É uma resistência silenciosa e constante. Os
clientes voltam discretamente. Os vizinhos não incomodam. E a namorada
drogada voltou a visita-lo.
São arranjos possíveis que o cotidiano vai nos ensinando a conviver nos negros tempos que ora atravessamos.
MLuizaRecife,
23.07.2019
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