MUNDO, MUITO PRAZER.

MLUIZA (TRÊS MESES DE IDADE))


Nasci na noite do dia 12 de julho de 1951 numa velha casa na Rua do Sol no pequeno povoado de Alagoinha, incrustado na caatinga do sertão do Salgado-CE. Uma parteira me pegou. Eu sabia seu nome, mas já não lembro. Minha mãe não tinha leite. Mamei no peito de Dona Aurora Conrado. Assim sendo, fui gêmea de Besouro, apelido do meu irmão de leite. Nascer sob o signo do sol e me alimentar na aurora foi um vaticínio que me guiou os passos: para o bem ou para o mal, viver, para mim, sempre foi amanhecer. Ter um irmão besouro deve ter-me despertado inconscientemente para o desejo de voar. Voar é libertar o olhar, é acreditar na imaginação como uma bússola que orienta os sentidos.

Enterraram meu umbigo na porteira do curral prenunciando o meu interminável  dilema entre a terra que me prende e a imaginação que me liberta. Esse é o desafio que me acompanha, a contradição que fertiliza a minha vida, o desapontamento com a minha incapacidade de ser onipresente e principalmente o sacrifício que me impõem as escolhas.  

Nasci primeira filha e primeira neta e, portanto, havia naturalmente apreensão com a minha chegada. Fui um bebê xôxo e mirrado, segundo contam. Causou preocupação o fato de ter nascido com o crânio irregular. Um lado mais alto que outro que permanece até hoje. Fiz de um defeito de nascença uma marca registrada. Penso que esta protuberância talvez seja o cofre onde está guardada a singularidade que me salva da vala comum.

Do peito aconchegante de Dona Aurora fui direto para o leite de gado. No sítio São Pedro, meu avô reservou uma vaca só para me alimentar.  O curral ficava ao lado da casa grande. Do outro lado, ficava o açude. O gado mugindo ao atravessar sua parede de volta ao curral nas tardes modorrentas, a movimentação madrugadora com   o barulho dos baldes, a conversa dos vaqueiros ordenhando as vacas, o entra-e-sai da casa grande, o eventual barulho do vento, o som das mulheres conversando na cozinha, a sonoridade intermitente dos armadores de rede - para lá e para cá - aliviando a inclemência do calor fizeram a trilha sonora que embalou a minha mais tenra infância.

Acredito que minha memória auditiva foi inconscientemente estimulada desde cedo. As coisas me entram pelos ouvidos. Ouvi muuuuuita estória de trancoso com ricos detalhes para compor a ambientação e dar vitalidade aos diálogos.  Fui criada sob o signo da oralidade. Sou fascinada pela palavra e mais ainda pela sua sonoridade.  Isso eu fui percebendo com o tempo. O som acrescenta força à significância da palavra. O conceito explica, mas é o som o determinante do sentido mais imediato que a palavra me provoca. Ainda hoje, às vezes, leio alto para embrenhar-me no texto. Isso me atiça um outro efeito e uma relação mais intima com o que estou lendo.

De repente, foram os sons que me introduziram no mundo e despertaram as minhas primeiras impressões. Depois, o tempo foi apresentando-me outras possibilidades e guiando minhas incursões no infinito caleidoscópio a que chamamos vida.  

MLUIZA

Recife, 13.07.2019

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