MLUIZA |
Os
hábitos alimentares são fenômenos socialmente construídos e variam de acordo
com a cultura, condições geográficas, convenções sociais, entre outras
variáveis. Representam, portanto, produtos das relações entre cultura e meio
ambiente que são transferidos entre gerações. Assim sendo, a comida transcende
o seu significado biológico da satisfação de uma necessidade básica de
sobrevivência e, por conseguinte, comer passa a ser compreendido como ato
social desenvolvido e cultivado a partir da sua função no contexto das relações
humanas. Essa transformações entretanto não acontecem como rupturas
instantâneas mas incorporam, ao longo do tempo, micro mudanças que ocorrem coetâneas a outras
alterações.
A ritualização das refeições é um
fenômeno observado desde os povos mais antigos. A princípio, vinculada à
religiosidade foi-se transformando com as mudanças promovidas pelo processo
civilizador sobre o comportamento dos indivíduos em suas relações sociais. Os
rituais relacionam o ato de comer com o grau de civilização. Regras de etiqueta e boas maneiras são
conveniências criadas pelos homens e servem como elementos definidores da
inclusão e/ou exclusão do indivíduo em determinados grupos., São, portanto, marcadores de relações de classe, de gênero e
de gerações.
Quanto mais avançado o grau de
civilização de uma sociedade, os alimentos tendem a se distanciarem das suas
formas naturais e o paladar dos indivíduos ao entrarem em contato com novos
tipos de sensações gustativas passam a perceber diferentes gostos. Estas
alterações promovem mudanças de hábitos e costumes à mesa a medida em que,
neste transcurso, a satisfação da
necessidade biológica e a consolidação da delicadeza e do requinte associam-se ao
conceito de alimentação.
Isto posto, vamos ao que nos interessa
que é a função social da refeição. O período recortado corresponde a mediados
do século XX, explicitamente os anos 50 e 60, numa localidade sertaneja que se
caracteriza como uma comunidade pobre, onde predominam caraterísticas rurais, praticamente
analfabeta, socialmente desigual, extremamente carente de recursos mínimos que,
com o passar do tempo, foi incorporando hábitos impostos pelo processo
modernizador.
A SALA DE JANTAR: FUNCIONALIDADE E SENTIDOS
A sala
de jantar foi introduzida, na Europa, no fim do século XVII para classes muito
restritas e só muito tempo depois se generalizou nas residências. A instalação
de ambiente próprio permitiu a definição de um espaço adequado às refeições. Mas, é o século XIX que marca definitivamente
uma mudança na maneira de servir os alimentos, os seus rituais e os
horários. É praticamente neste século
que se estabelecem iniciativas e exercícios no sentido de estabelecer uma
etiqueta à mesa. E, como toda fase experimental tem os seus exageros foi criada
uma variedade imensa de talheres, uma profusão de regras, protocolos e mudanças
de horários para compatibiliza-lo com outras atividades na administração da
vida cotidiana.
Seria
insanidade imaginar que esse tipo de preocupação fosse sequer imaginado para
uma região que começa a ser desenhada de forma rudimentar e precária
praticamente a partir da transição entre os séculos XVIII/XIX como é
especificamente o caso da nossa região no contexto do sertão. Assim sendo, as
questões que colocamos quando pretendemos transitar por esta temática precisam
considerar que no sertão do século XIX existiam preocupações bem mais urgentes.
Isto não significa que não há registro de hábitos alimentares, mas estes
estavam mais associados principalmente às rotinas de uma cozinha elementar
baseada na limitada variedade de alimentos disponíveis e sempre sujeita aos
revezes climáticos. Neste período, identifiquei alguns registros de mesas
distribuídas pelas cozinhas mas com múltiplas funções e ainda sem a finalidade
de uma sala de jantar. De rusticidade singular e sem nenhuma noção de protocolos, normas ou
regras, as mesas tinham sua funcionalidade
Aos
poucos, este ambiente se diferencia adquirindo uma importância própria. É um ambiente
híbrido que traz da cozinha essa relação com a intimidade mas quebra a sua
informalidade avançando para outras funções
A
cozinha continua como laboratório e espaço de intimidade. A sala de jantar
adquire um status nobre e embora ainda permaneça como um ambiente íntimo,
incorpora a formalidade e, portanto, a norma. Conserva o cardápio que vem da cozinha,
mas referenda hierarquias que na convivência da cozinha existiam de forma
diluída.
Com o
surgimento da sala de jantar, embora ainda como uma subsidiária da cozinha, aos
poucos vão-se incorporando rudimentares noções de estética que se traduzem na arquitetura
e construção dos espaços definindo de forma mais clara a cozinha como um espaço
para produção de alimentos e a sala de jantar como local de degustação. Assim
sendo, novos objetos passam a ser necessários com esta finalidade. Observando
algumas informações em inventários muito antigos, vemos o registro de garfos,
colheres e outros utensílios relacionados com a mesa. Este registro representa,
na época, a sua importância e valorização entre o conjunto dos diversos bens
inventariados.
Com a
sala de jantar, o uso da mesa traz novas incorporações, ela não é só a vitrine
das nossas práticas e hábitos alimentares, mas, também, passa a ser mediadora
das nossas relações familiares e sociais. No curto percurso entre estes dois
ambientes – cozinha/sala de jantar – com o consequente uso da mesa como espaço
de sociabilidade transpomos o conceito de alimentação sob a perspectiva
nutricional e biológica para o conceito de comer como ato social. A alimentação
se materializa em hábitos, costumes e rituais e, assim, passa a importar não apenas o que comemos, mas quando, como, onde e com quem comemos.
O comportamento à mesa demanda conhecimento das regras que regem os códigos de boas maneiras que perpassam as relações sociais. A mesa como espaço de sociabilidade agrega à relação familiar outros elementos tais como: tomada de decisão, negócios, interesses, especulação, poder, ambiçao, intriga, etc.. O ato de comer juntos é uma forma de iniciar ou manter as relações entre as pessoas. A comensalidade é um momento de partilha e integração entre pessoas, sejam ou não familiares. Os múltiplos usos da mesa permitem esse momento de integração ao mesmo tempo de natureza real e simbólica.
Tradicionalmente,
um dos momentos mais importantes na dinâmica da convivência dentro de uma casa
é o momento das refeições. O que aparentemente parece simples tem regras e
significados que vão além das boas maneiras. A presença obrigatória à mesa era
reservada aos membros da família e
eventualmente a algum convidado. A ausência para ser aceita precisava ser
considerada justa pelas autoridades da família. Para que isto fosse cumprido coletivamente
era preciso estabelecer horários regulares onde todos estariam presentes. Em
nossa comunidade basicamente dedicada às atividades de agricultura e pecuária,
por exemplo, precisavam ser compatíveis com a lida no campo. Encontramos, para este período, registros de
horários de refeições iniciando praticamente na madrugada e distribuídos até o
pôr do sol.
“Mas o que foi isso que meu pai viu lá
para o alto da aroeira? São dez horas da manhã. Matias está em casa para o almoço, conforme é
tradição nesses tempos.” (DUARTE, Sebastião Moreira,
p. 11)
A mesa
era e ainda permanece sendo um elemento que formaliza hierarquias e diferenças inclusive de classe.
As suas regras são pautadas por uma ordem interna que estabelece, de forma sutil ou explícita, valores e, significados. A disposição dos
lugares é uma representação destes elementos. Na intimidade cotidiana, o lugar
do pai, da mãe, dos filhos adultos e das crianças são representações dessa
organização interna da família.
A
memória da minha convivência à mesa no sertão dos anos 50/60 registra que a
cabeceira da mesa era o principal lugar e assim sendo era ocupada pelo chefe da
família. Ao largo da mesa distribuíam-se os demais comensais. Na ordem de
importância vinham a mãe, os adultos, incluindo eventuais visitas, e finalmente
as crianças. Se a mesa estava lotada, as crianças geralmente eram direcionadas
para uma segunda rodada na mesa principal, para uma mesa paralela ou para um
espaço eventualmente determinado na ocasião.
Os agrados e os cuidados com a alimentação das crianças não contemplavam
a sua prioridade na hierarquia da mesa de refeições. As refeições formais, café
da manhã/almoço/jantar tinham horário determinado e o intervalo entre elas era
orientado a partir do café da manhã servido muito cedo. Nos intervalos entre as
refeições servia-se uma merenda e alguma coisa também antes de dormir. Essas
refeições intermediárias embora não fossem uma regra geral também não eram
incomum entre algumas famílias.
Cada casa com seu jeito e seu tempero fazia a diferença na confecção no nosso
modesto e saudável cardápio.
O QUE
COMÍAMOS
Apesar
de simples e despretensioso, o nosso cardápio era variado e nutrititivo.
Tínhamos feijão, milho,
café (torrado e moído em casa), fava, arroz branco e arroz vermelho, carne
(boi, carneiro e porco) e derivados, aves (galinha, capote, peru) e derivados, leite e seus derivados de processamento artesanal (manteiga, coalhada, queijo
de coalho e queijo de manteiga) peixe de água doce pescados pelos açudes da área
(traíra, curimatã, piau, piaba, pacú, entre outros), carne de caça (peba, algum
avoante) e invariavelmente farinha.
As
frutas que tínhamos disponíveis nas temporadas de safra eram: banana (maçã,
casca verde e babona), laranja (pera, lima, da terra), manga (espada, rosa e
coité), goiaba, cajá, cajarana, umbu, seriguela, limão, abacate, abacaxi,
mamão, macaúba, jatobá, caju, pitomba, maracujá,
caju, pinha, mamão, abacaxi, coco, e mari.
O limão e a manga eram proibidos para as mulheres menstruadas. Nunca esqueço que se dizia que a mulher que bem sabe sequer passa embaixo de um pé de limão quando está menstruada. Sempre tive um 'fraco' por limão e manga com sal, o que me valeu muito sermão porque limão com sal fazia mal ao fígado.
O limão e a manga eram proibidos para as mulheres menstruadas. Nunca esqueço que se dizia que a mulher que bem sabe sequer passa embaixo de um pé de limão quando está menstruada. Sempre tive um 'fraco' por limão e manga com sal, o que me valeu muito sermão porque limão com sal fazia mal ao fígado.
As
verduras não faziam parte da nossa mesa. As saladas portanto estavam fora dos cardápios. Até a
década de 60, eu não lembro de ter visto verduras servidas em nossas mesas. Em
compensação, tínhamos jerimum (de leite e caboclo), macaxeira, batata doce,
mandioca, tomate, cebola.
Para
temperar a comida utilizava-se: coentro, cebolinha, tomate, pimentão, alho,
vinagre, banha de porco, pimenta do reino e colorau. Dona Julia, mãe de Tutu, que morava vizinho a casa de Dona Uila, atualmente onde funciona a delegacia, tinha um canteirinho suspenso onde íamos comprar coentro e cebolinha.
A nata era excelente tempero para alguns pratos. Bifes fritos na nata e também o seu uso como molho de macarrão misturado com queijo de coalho ralado são boas referências da minha memória gustativa.
A nata era excelente tempero para alguns pratos. Bifes fritos na nata e também o seu uso como molho de macarrão misturado com queijo de coalho ralado são boas referências da minha memória gustativa.
As
massas que passavam por nossa mesa eram basicamente originadas na produção das
padarias locais através dos pães (aguado, sovado e recife) e no processamento
artesanal e biscoitos. Pelos seus fornos também passavam nossos bolos e os
assados maiores que as famílias levavam na falta em casa de um forno mais
adequado à tarefa. Outros biscoitos processados pela indústria nos chegavam
através das bolachas tipo ‘bolacha maria’ e cream cracker. O macarrão também
fazia parte da dieta mas sua elaboração era muito simples na culinária
doméstica.
Os
nossos doces e guloseimas eram praticamente os de goiaba, banana, leite, buriti,
geleia de manga, mel de engenho, rapadura, alfenin, batida, mariola, chouriço
doce, espécie, quebra queixo, cocada e pirulito. Doces de goiaba, banana, caju
e buriti também eram encontrados de forma industrializada apresentados em latas, embalagens de madeira
(tipo caixotinho) ou embrulhados artesanalmente.
As farinhas eram compostas principalmente de
farinha de mandioca, goma e pelo fubá. A farinha de mandioca era um acompanhamento
por excelência. A partir do milho produzia-se
a farinha do milho e o fubá que tinham processamentos diferenciados conforme
sua destinação. O fubá, por exemplo, era
uma farinha muito fina que podia ser
comida com mel, na banana machucada ou em outras iguarias que não lembro no
momento. Era diferente portanto da que se usava em, por exemplo, no cuscuz. Os milhos processados em moinhos artesanais de uso doméstico bem como
a goma de mandioca tinham múltiplas utilizações na confecção de alimentos
disponíveis na nossa mesa.
De manhã cedinho, canecos esperavam o leite fresco e espumante que saía do peito da va. Bebia-se ali mesmo no curral. Na mesa dacasa, o café da manhã estava servido. Tapioca, leite, cuscuz com nata, queijo, coalhada, café, leite e, em algumas residências ovos estrelados.Não esqueço o cheiro da café da manhã na casa de meu tio Sebastião no sitio São Pedro.
O almoço servido cedo tinha arroz, feijão, carne verde, carne de sol, galinha, peixe de água doce, capote, pato, carne de carneiro, porco, batata doce e outras coisas produzidas na região. Às vezes, macarrão. Alguma coisa doce depois do almoço e um cafezinho pra fechar a refeição. Quando tinha visita, sempre tinha galinha e às vezes também aos domingos. Algumas vezes, nos dias mais especiais, acompanhada de molho pardo. Era preciso ter um chiqueiro preparado para as visitas inesperadas.
Ao cair da tarde, era o jantar. Praticamente era similar ao almoço e algumas vezes servia-se sopa. Depois café, bolo, cuscuz, tapioca.
Antes de dormir era a hora da coalhada, do doce, um biscoitinho, café com leite ou puro para não dormir de estômago vazio.
As refeições dos mais humildes pobres incluíam a
caça e os peixes, pescados nos poços dos riachos ou nos açudes. Os peixes mais comuns
eram a curimatã, a traíra e o piau.
O angu fazia parte de todas as mesas . Preparado com fubá de milho podia ser servido nos almoço e no jantar acompanhado de galinha, carne, caldo de peixe. O pirão de farinha era bem apreciado. O pirão de ovos feito na casa de minha vó Maria era especial com o tempero à base de pimenta do reino era irresistível.
As mulheres gestantes preparavam os chiqueiros separando as galinhas para o resguardo. Um mês de galinha acompanhada de arroz, angu, pirão.
A alimentação dos bebês nos seus primeiros meses
era praticamente à base de leite: mingaus e papas. Era muito comum servir a
papa ao bebê utilizando-se o dedo. O
prato era explorado a partir da beira para o seu interior. A expertise das mulheres ao utilizarem o dedo para dar a
papa ao bebê causava-me admiração. Depois, muito depois, entrariam
na sua dieta arroz de leite, banana, sopas e comida comum. Os sucos de frutas
não eram corriqueiros e as verduras estavam fora de cogitação. As vitaminas
praticamente não existiam porque não havia liquidificador. Minha vó trouxe de
Fortaleza um liquidificador de alumínio movido a base de manivela que ajudou
bastante na elaboração das nossas merendas.
Em posts anteriores publicamos algumas receitas do
nosso cardápio local mas inúmeras outras encontram-se disponíveis na internet
embora, em sua maioria, já tenham sido agregados novos elementos que antes não
eram encontrados nas nossas cozinhas.
A nossa alimentação era saudável, não se conheciam
os agrotóxicos nem tecnologias ainda que rudimentares, a disponibilidade dos
alimentos estava vinculada diretamente à questão climática. Éramos uma
comunidade pobre e basicamente dependente da agricultura e da pequena pecuária,
tanto como fonte de renda quanto como supridora de alimentos. A precária
atividade rural lastreava, em todos os sentidos, a nossa sobrevivência e as
nossas relações sociais. Os produtos que
não eram colhidos e guardados em casa, eram adquiridos nas pequenas bodegas e
nas bancas distribuídas no espaço da feira semanal.
Nossas mesas de madeira produzidas por um
carpinteiro da localidade e/ou da vizinhança. Predominavam os formatos
retangular e/ou quadrado. O tamanho variava com o tamanho do espaço e as necessidades
da família. Como a grande maioria das casas não tinha copa, a sala de jantar
congregava todas as funcionalidades dos serviços relacionados à alimentação
menos as que dizem respeito aos afazeres da cozinha. As toalhas de mesa de uso
diário eram de tecido de algodão, utilizando-se bastante o xadrez, eventualmente
alguma outra estamparia, e o plástico a
que se chamava ‘encerado’ geralmente de uma só cor. Os pratos, travessas,
xícaras e pires eram de louça comum e/ou ágata conforme as posses de cada um. Algumas residências contavam com uma louça
mais fina utilizada em ocasiões especiais.
Compartilho com vocês algumas peças das casas da minha vó e da minha mãe que tenho comigo.
Peças de um jogo de café |
Delicadeza do pires. |
Biscoiteira |
Meu primeiro pratinho de ágata. Deve ter uns 65/66 anos |
Mantegueira de vidro |
Floreira |
Detalhe da floreira |
Bandeijinha de servir água |
OS TALHERES
Manusear os talheres sempre foi associado ao bom
comportamento e a etiqueta à mesa. Antes do seu surgimento quando ainda se comia
diretamente com a mão, o número de dedos que pegava na comida identificava a classe
social. Os nobres usavam apenas três dedos enquanto a
plebe usava a mão inteira. Na Idade Média, a introdução do garfo para
substituir a função dos dedos nas refeições trouxe um novo requinte à mesa. O
garfo era um utensílio raro e luxuoso e durante muito tempo havia apenas um
garfo na mesa para ser compartilhado por todos. Só depois de muito tempo passou
a ser um objeto de uso individual. Popularizado no século XIX, o seu
uso representava polidez, fineza e civilidade funcionando, portanto, como um
elemento diferenciador entre classes sociais. A consolidação do seu uso traçou
novas regras. Comer com os dedos passou a ser visto como uma atitude canibal,
anti-higiênica e inadequada para um ambiente onde se estabeleciam relações
sociais. Posteriormente, entrou em pauta a questão da saúde como um reforço às
novas regras. Concomitante com a evolução dos utensílios da mesa foi
evoluindo também a forma e a disposição dos talheres e aperfeiçoando-se o
disciplinamento do seu uso.
No sertão dos anos 50/60, os talheres eram feitos
de metais e podiam ter modelos bem simples ou com algum detalhe. Às vezes, os
cabos eram de madeira. Enquanto o garfo e a faca tinham funções específicas, as
colheres tinham funções múltiplas: tomar sopas e alimentos líquidos, servir-se
de sobremesas, adoçar café, chá, leite bem como ser utilizada para servir a
alimentação das crianças e dos menos treinados no uso do garfo. Eram muito
populares no cotidiano doméstico as colheres de latão. De cor dourada elas
demandavam cuidado para manter aspecto de novas. A faca foi, entre os talheres,
o primeiro a ser introduzido pela sua própria utilidade no trato com os
alimentos. O seu uso vai alterando-se ao longo do tempo. O garfo foi o último talher a ser introduzido..
Alguns modelos de garfo utilizados no período. Todos eram de metal. Os mais comuns eram de alumínio e alpaca. As colheres de latão dourado eram bastante utilizadas.
Alguns modelos de garfo utilizados no período. Todos eram de metal. Os mais comuns eram de alumínio e alpaca. As colheres de latão dourado eram bastante utilizadas.
Detalhes de uma faca |
Garfos de alumínio |
Colheres de alpaca |
Os faqueiros com uma variedade maior de talheres e de
melhor qualidade começaram a se popularizar entre os fins dos anos 60 e inicio dos anos 70. Ainda assim,
as facas não tinham a famosa serrinha de forma que algum tempo depois elas
ficaram obsoletas. Como o comércio tem uma dinâmica própria e muita
criatividade para atender novas necessidades, em nossa vizinha Cajazeiras
surgiu um artesão especialista em colocar serrinhas nas facas. Não lembro o seu nome mas sei que foi ele quem
botou serrinha nas facas do faqueiro da nossa casa.
No período que ora registramos, o uso dos talheres
convivia com a prática de comer com a mão embora em algumas residências essa
prática já não era aceita na mesa. Nestas, a concessão possível era comer de
colher ainda assim era uma atitude reservada às crianças pequenas e/ou a algum
eventual comensal ainda não treinado no uso completo dos talheres. Quem dessa
época não conviveu com o famoso ‘capitão’, ou seja, com a prática de fazer
bolinhos de comida e leva-los diretamente à boca principalmente utilizados com
crianças. Essa prática resistiu ainda durante algum tempo, mas não sobreviveu à
imposição das novas regras da mesa.
Faqueiro |
No Ipaumirim dos anos 50 era a sortida bodega de
Adolfo Augusto de Oliveira abastecia o município vendendo objetos utilizados na
mesa e na cozinha. Geralmente o período de compras era logo após a safra de
algodão. Quanto melhor a safra, mais panelas, bules, pratos, talheres,
farinheiras, etc.. eram vendidos.
Entre os mais humildes, a introdução dos talheres
foi bem mais lenta e haviam casas que ainda não tinham assimilado essa prática.
Os copos dos moradores da casa eram basicamente
de alumínio sendo os das crianças geralmente coloridos e com o nome gravado. Os
demais eram de vidro, tipo copo americano, reservado para visitas. Em ocasiões
mais formais, a água era geralmente servida em porta copos. No cotidiano, era
mais comum dirigir-se à cantareira onde estavam os potes, optar pelas
quartinhas de barro e posteriormente pelos filtros quando estes foram
introduzidos.
Filtro de água |
Entre o pote, a quartinha e o filtro. |
Cantareira |
Quartinha |
Porta copo esmaltado |
Porta copo de metal |
A grande maioria das salas de jantar tinham um
mobiliário muito simples. Uma mesa de madeira, uma petisqueira, cadeiras e
tamboretes de madeira e/ou de madeira e couro, geralmente de confecção local,
completavam os móveis da maioria das salas de jantar que também podiam contar
com uma cantareira e um lavatório de ferro. Como não tínhamos água encanada, um lavatório era essencial.
Na década de 60 foram introduzidos os móveis de
fórmica vendidos no comércio de Cajazeiras – nosso espelho de modernidade. Mesa, cadeiras e armário constituídos com
revestimento de fórmica e a base de metal. Chamava-se, na época, ‘moveis de
estilo funcional’ ou móveis ‘pé de palito’ por conta do design mais leve e mais
fino das peças que davam sustentação aos móveis. As geladeiras à querosene eram
muito raras de forma que poderiam ser consideradas um bem inacessível para a
maioria.
Cristaleira |
Armário de usos múltiplos |
Petisqueira |
Lavatório |
Lavatório |
Mesa e cadeiras de fórmica |
Em todos os níveis sociais, participar de uma mesa
de refeições é um indicador de pertencimento tanto no contexto da família
quanto na comunidade mais ampla. Comer junto é uma manifestação explicita de
unidade, coesão, legitimação de posições e interesses comuns. Tem uma expressiva função
social que vai além da aparente solidariedade e integração entre os
comensais. Os banquetes são reuniões
festivas sublinhadas por uma certa solenidade que estreitam laços, defendem interesses,
simbolizam acordos e celebram contratos ainda que não explícitos. Envolto no clima festivo e sob os auspícios da
hospitalidade compartilha-se um jogo em que se misturam diferentes sentimentos.
O objetivo subjacente à comensalidade
amistosa é uma rede de interesses que transforma esse espaço de sociabilidade
num espaço de negociação. Mais do que a comida, importam os fatos, lugares,
coisas e pessoas que compartilham a mesa.
Assim como no ambiente doméstico, o
banquete representa hierarquias e relações de poder que se expressam na
distribuição dos lugares que cada um ocupa na mesa, na deferência e no tipo de
alimentos servido a cada conviva quando, por exemplo, são servidos diferentes
pratos numa mesma refeição.
Transcendendo essas dimensões, o prazer de comer
funciona como um amálgama entre diferentes propósitos e a cordialidade contribui
com a harmonia aparente.
Os banquetes sempre acontecem em torno
de algum evento. Hoje, refletindo sobre as motivações e os comensais dos
banquetes que eu tive a oportunidade de participar no sertão entre os anos 50 e
60, observo o componente político e o jogo de interesses subjacente. Geralmente
os banquetes eram motivados por um evento social, como casamentos, por uma
cerimônia cívica em datas comemorativas e ainda por razões eleitoreiras
principalmente por ocasião de campanhas políticas. Em todos eles estavam
presentes e recebiam tratamento privilegiado as mesmas pessoas que
representavam o poder local.
Na
mesa não faltava galinha, carne, macarrão, arroz e farofa. Tudo feito com
simplicidade e capricho. O que marcava a diferença era a fartura. A solenidade
requerida nos banquetes não contemplava a buchada, o sarapatel, a panelada e
afins.
"O nosso sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo coalhada com carne de sol, costelas de carneiro com pirão de leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o mungunzá que o africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena". (CASCUDO, 1984, p. 27)
A sobremesa eram geralmente doces de produção caseira. Não se serviam sucos. Uma cerveja – mesmo quente – não devia faltar. Refrigerantes não eram comuns. Na mesa posta, os alimentos aguardavam que as mulheres servissem os convidados. Eventualmente era proferido algum discurso quando isto não tivesse acontecido durante o evento principal que sempre antecedia a refeição. Banquete em temporada de moscas era uma temeridade. Os abanos e as rodilhas num ritmado ‘pra lá e pra cá’ tentavam amenizar a fúria dos insetos e manter um mínimo de dignidade ao banquete mas atrapalhavam a concentração e a conversa entre os comensais.
"O nosso sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo coalhada com carne de sol, costelas de carneiro com pirão de leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o mungunzá que o africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena". (CASCUDO, 1984, p. 27)
A sobremesa eram geralmente doces de produção caseira. Não se serviam sucos. Uma cerveja – mesmo quente – não devia faltar. Refrigerantes não eram comuns. Na mesa posta, os alimentos aguardavam que as mulheres servissem os convidados. Eventualmente era proferido algum discurso quando isto não tivesse acontecido durante o evento principal que sempre antecedia a refeição. Banquete em temporada de moscas era uma temeridade. Os abanos e as rodilhas num ritmado ‘pra lá e pra cá’ tentavam amenizar a fúria dos insetos e manter um mínimo de dignidade ao banquete mas atrapalhavam a concentração e a conversa entre os comensais.
No
caso dos casamentos, a emoção aflorava no momento da bênção. Os pais,
geralmente sentados, aguardavam o momento em que os filhos se ajoelhavam sobre
uma toalha branca para pedir a sua bênção após a cerimônia religiosa. O ajoelhar-se realçava sobretudo o respeito
dos filhos diante dos pais, a ruptura entre a condição anterior e a atual e os
auspícios de uma nova vida abençoada pelas famílias. A seguir, vinha o banquete
e finalmente, quando fosse o caso, um belo forró pé de serra no chão de barro
batido dos terreiros e/ou das salas onde se dançava. Daí em diante é o momento esperado pela
juventude presente. Cachaça, dança e namoro são essenciais para a moçada. Vez
por outra, respingar levemente água sobre o chão de terra era providencial para
evitar que a poeira levantasse. E haja animação!
Estive
em banquetes memoráveis tanto na sede do município quanto na zona rural tanto por ocasião de casamentos quanto de
eventos de outra natureza. Particularmente, lembro de um que participei por
ocasião de um evento cívico realizado na casa de Joaninha Irineu, professora
rural, que dava aulas na própria casa à margem da estrada velha entre Ipaumirim
e Cajazeiras, próxima ao local onde funcionava um posto fiscal de fronteira
entre Ceará e Paraíba.
Joaninha
era professora de uma escola radiofônica vinculada à Diocese do Crato que fazia
parte do Movimento de Educação de Base – MEB que visava
à formação integral de adolescentes e adultos das áreas menos desenvolvidas,
assessorando-os com cursos, ministrados principalmente por meio de programas
radiofônicos. O Movimento
de Educação de Base (MEB), fundado em março de 1961, era um organismo
vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que tinha como objetivo a
promoção humana integral e a superação da desigualdade social por meio de
programas da educação popular libertadora inspirado nos princípios filosóficos
de Paulo Freire. Em Ipaumirim, era
coordenado por Padre José Ismar Petrola de Melo Jorge recém empossado vigário local. A repressão
política do golpe de 1964 destruiu o movimento. Em 1970, o MEB ressurgiu mas
com outras propostas condizentes com a ditadura.
Quando
chegamos, de jeep, os alunos aguardavam enfileirados. Uma bandeira do Brasil
hasteada exaltava o clima de civismo no ambiente. Quando Dr. Francisco
Vasconcelos de Arruda, deputado estadual que representava a nossa região, desce do carro, as crianças cantam o hino nacional. Depois,
vieram os discursos. Política e igreja juntos é o que se espera para legitimar
um evento. O banquete foi impecável principalmente para mim porque me cederam
um lugar que sobrou na mesa. Eu, que
sempre fui ‘biqueira’ para comer, nesse dia comi tanto que chamou a atenção de
todo mundo. Meu comportamento guloso valeu um carão e um castigo quando cheguei
em casa.
Também
estive presente por ocasião de enfadonhos banquetes políticos mas nenhum me
deixou lembranças. Talvez porque eu não tive lugar na mesa.
MLUIZA
Recife
5.09.2018
AGRADECIMENTOS
AGRADECIMENTOS
Esse
post só foi possível pela colaboração de Antocildo
Barbosa, Fátima Gomes Lemos, Federalina Quaresma, Flávio Lúcio Bezerra de Oliveira,
Gildaci Leandro, Gutemberg Sampaio Torquato, Irma Macedo Suarez Cavin, José
Ribeiro, Josenira Holanda Brasil, Lucenígia Maia de Moura, Lúcia Dore Gonçalves,
Luciene Gonçalves Nóbrega, Luiz Leite da Nóbrega Neto e Vanuza Brasil.
BIBLIOGRAFIA
ALENCAR,
Odon Antão de. Minha vida nos baixios.
Fortaleza: Edições A Província. 2007. 192 p.
ASFORA,
Wanessa Colares. Utopias alimentares e vida cotidiana. In: Miranda, D.S. e G.
CORNELLI. Cultura e alimentação.
Saberes alimentares e saberes culturais. São Paulo: SESC, 2007. P. 41-49. Disponível
em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/451971/mod_resource/content/1/ASFORA%20cultura%20e%20alimenta%C3%A7%C3%A3o%20p.%2041-49.%2007.04.pdf
BARBOSA, Talita Prado. Antropologia e gastronomia: a
identidade de ser brasileiro a partir da alimentação. UNESP/FFC. Disponivel em https://docplayer.com.br/8916333-Antropologia-e-gastronomia-a-identidade-de-ser-brasileiro-a-partir-da-alimentacao.html
BARROSO,
Gustavo. Terra de sol. Fortaleza.
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do cinquentenário da obra.)
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