RECADO PROCEIS

POR ENQUANTO, ESTOU ENVOLVIDA COM AS ELEIÇÕES. PASSADA ESSA FASE TRAGO NOVIDADES PARA ESTE BLOG E TAMBÉM PARA O PORTRAIT.

O PÃO NOSSO DE CADA DIA: TRANSCENDÊNCIA ENTRE A SOBREVIVÊNCIA E AS RELAÇÕES SOCIAIS

MLUIZA
Os hábitos alimentares são fenômenos socialmente construídos e variam de acordo com a cultura, condições geográficas, convenções sociais, entre outras variáveis. Representam, portanto, produtos das relações entre cultura e meio ambiente que são transferidos entre gerações. Assim sendo, a comida transcende o seu significado biológico da satisfação de uma necessidade básica de sobrevivência e, por conseguinte, comer passa a ser compreendido como ato social desenvolvido e cultivado a partir da sua função no contexto das relações humanas. Essa transformações entretanto não acontecem como rupturas instantâneas mas incorporam, ao longo do tempo,  micro mudanças que ocorrem coetâneas a outras alterações.
A ritualização das refeições é um fenômeno observado desde os povos mais antigos. A princípio, vinculada à religiosidade foi-se transformando com as mudanças promovidas pelo processo civilizador sobre o comportamento dos indivíduos em suas relações sociais. Os rituais relacionam o ato de comer com o grau de civilização.  Regras de etiqueta e boas maneiras são conveniências criadas pelos homens e servem como elementos definidores da inclusão e/ou exclusão do indivíduo em determinados grupos., São, portanto,  marcadores de relações de classe, de gênero e de gerações. 
Quanto mais avançado o grau de civilização de uma sociedade, os alimentos tendem a se distanciarem das suas formas naturais e o paladar dos indivíduos ao entrarem em contato com novos tipos de sensações gustativas passam a perceber diferentes gostos. Estas alterações promovem mudanças de hábitos e costumes à mesa a medida em que, neste transcurso,  a satisfação da necessidade biológica e a consolidação da delicadeza e do requinte associam-se ao conceito de alimentação.
Isto posto, vamos ao que nos interessa que é a função social da refeição. O período recortado corresponde a mediados do século XX, explicitamente os anos 50 e 60, numa localidade sertaneja que se caracteriza como uma comunidade pobre, onde predominam caraterísticas rurais, praticamente analfabeta, socialmente desigual, extremamente carente de recursos mínimos que, com o passar do tempo, foi incorporando hábitos impostos pelo processo modernizador.

A SALA DE JANTAR: FUNCIONALIDADE E SENTIDOS
A sala de jantar foi introduzida, na Europa, no fim do século XVII para classes muito restritas e só muito tempo depois se generalizou nas residências. A instalação de ambiente próprio permitiu a definição de um espaço adequado às refeições.  Mas, é o século XIX que marca definitivamente uma mudança na maneira de servir os alimentos, os seus rituais e os horários.  É praticamente neste século que se estabelecem iniciativas e exercícios no sentido de estabelecer uma etiqueta à mesa. E, como toda fase experimental tem os seus exageros foi criada uma variedade imensa de talheres, uma profusão de regras, protocolos e mudanças de horários para compatibiliza-lo com outras atividades na administração da vida cotidiana.
Seria insanidade imaginar que esse tipo de preocupação fosse sequer imaginado para uma região que começa a ser desenhada de forma rudimentar e precária praticamente a partir da transição entre os séculos XVIII/XIX como é especificamente o caso da nossa região no contexto do sertão. Assim sendo, as questões que colocamos quando pretendemos transitar por esta temática precisam considerar que no sertão do século XIX existiam preocupações bem mais urgentes. Isto não significa que não há registro de hábitos alimentares, mas estes estavam mais associados principalmente às rotinas de uma cozinha elementar baseada na limitada variedade de alimentos disponíveis e sempre sujeita aos revezes climáticos. Neste período, identifiquei alguns registros de mesas distribuídas pelas cozinhas mas com múltiplas funções e ainda sem a finalidade de uma sala de jantar. De rusticidade singular  e sem nenhuma noção de protocolos, normas ou regras, as mesas tinham sua funcionalidade
Aos poucos, este ambiente se diferencia adquirindo uma importância própria. É um ambiente híbrido que traz da cozinha essa relação com a intimidade mas quebra a sua informalidade avançando para outras funções
A cozinha continua como laboratório e espaço de intimidade. A sala de jantar adquire um status nobre e embora ainda permaneça como um ambiente íntimo, incorpora a formalidade e, portanto, a norma. Conserva o cardápio que vem da cozinha, mas referenda hierarquias que na convivência da cozinha existiam de forma diluída.
Com o surgimento da sala de jantar, embora ainda como uma subsidiária da cozinha, aos poucos vão-se incorporando rudimentares noções de estética que se traduzem na arquitetura e construção dos espaços definindo de forma mais clara a cozinha como um espaço para produção de alimentos e a sala de jantar como local de degustação.   Assim sendo, novos objetos passam a ser necessários com esta finalidade. Observando algumas informações em inventários muito antigos, vemos o registro de garfos, colheres e outros utensílios relacionados com a mesa. Este registro representa, na época, a sua importância e valorização entre o conjunto dos diversos bens inventariados.
Com a sala de jantar, o uso da mesa traz novas incorporações, ela não é só a vitrine das nossas práticas e hábitos alimentares, mas, também, passa a ser mediadora das nossas relações familiares e sociais. No curto percurso entre estes dois ambientes – cozinha/sala de jantar – com o consequente uso da mesa como espaço de sociabilidade transpomos o conceito de alimentação sob a perspectiva nutricional e biológica para o conceito de comer como ato social. A alimentação se materializa em hábitos, costumes e rituais e, assim, passa a importar não apenas o que comemos, mas quando, como, onde e com quem comemos. 
O comportamento à mesa demanda conhecimento das regras que regem os códigos de boas maneiras que perpassam as relações sociais. A mesa como espaço de sociabilidade agrega à relação familiar outros elementos tais como: tomada de decisão, negócios, interesses, especulação, poder, ambiçao, intriga, etc.. O ato de comer juntos é uma forma de iniciar ou manter as relações entre as pessoas. A comensalidade é um momento de partilha e integração entre pessoas, sejam ou não familiares. Os múltiplos usos da mesa permitem esse momento de integração ao mesmo tempo de natureza real e simbólica.

Tradicionalmente, um dos momentos mais importantes na dinâmica da convivência dentro de uma casa é o momento das refeições. O que aparentemente parece simples tem regras e significados que vão além das boas maneiras. A presença obrigatória à mesa era reservada aos  membros da família e eventualmente a algum convidado. A ausência para ser aceita precisava ser considerada justa pelas autoridades da família. Para que isto fosse cumprido coletivamente era preciso estabelecer horários regulares onde todos estariam presentes. Em nossa comunidade basicamente dedicada às atividades de agricultura e pecuária, por exemplo, precisavam ser compatíveis com a lida no campo.  Encontramos, para este período, registros de horários de refeições iniciando praticamente na madrugada e distribuídos até o pôr do sol. 
“Mas o que foi isso que meu pai viu lá para o alto da aroeira?  São dez horas da manhã. Matias está em casa para o almoço, conforme é tradição nesses tempos.”  (DUARTE, Sebastião Moreira, p. 11)  

 A mesa era e ainda permanece sendo um elemento que formaliza  hierarquias e diferenças inclusive de classe. As suas regras são pautadas por uma ordem interna que estabelece,  de forma sutil ou explícita,  valores e, significados. A disposição dos lugares é uma representação destes elementos. Na intimidade cotidiana, o lugar do pai, da mãe, dos filhos adultos e das crianças são representações dessa organização interna da família.
A memória da minha convivência à mesa no sertão dos anos 50/60 registra que a cabeceira da mesa era o principal lugar e assim sendo era ocupada pelo chefe da família. Ao largo da mesa distribuíam-se os demais comensais. Na ordem de importância vinham a mãe, os adultos, incluindo eventuais visitas, e finalmente as crianças. Se a mesa estava lotada, as crianças geralmente eram direcionadas para uma segunda rodada na mesa principal, para uma mesa paralela ou para um espaço eventualmente determinado na ocasião.  Os agrados e os cuidados com a alimentação das crianças não contemplavam a sua prioridade na hierarquia da mesa de refeições. As refeições formais, café da manhã/almoço/jantar tinham horário determinado e o intervalo entre elas era orientado a partir do café da manhã servido muito cedo. Nos intervalos entre as refeições servia-se uma merenda e alguma coisa também antes de dormir. Essas refeições intermediárias embora não fossem uma regra geral também não eram incomum entre algumas famílias.
Cada casa com seu jeito e seu tempero fazia a diferença na confecção no nosso modesto e saudável cardápio.

O QUE COMÍAMOS

Apesar de simples e despretensioso, o nosso cardápio era variado e nutrititivo. Tínhamos feijão, milho, café (torrado e moído em casa), fava, arroz branco e arroz vermelho, carne (boi, carneiro e porco) e derivados, aves (galinha, capote, peru) e derivados,  leite e seus derivados de processamento artesanal (manteiga, coalhada, queijo de coalho e queijo de manteiga) peixe de água doce pescados pelos açudes da área (traíra, curimatã, piau, piaba, pacú, entre outros), carne de caça (peba, algum avoante) e invariavelmente farinha.
As frutas que tínhamos disponíveis nas temporadas de safra eram: banana (maçã, casca verde e babona), laranja (pera, lima, da terra), manga (espada, rosa e coité), goiaba, cajá, cajarana, umbu, seriguela, limão, abacate, abacaxi, mamão, macaúba, jatobá, caju,  pitomba, maracujá, caju, pinha, mamão, abacaxi, coco, e mari. 
O limão e a manga eram proibidos para as mulheres menstruadas. Nunca esqueço que se dizia que a mulher que bem sabe  sequer passa embaixo de um pé de limão quando está menstruada. Sempre tive um 'fraco' por limão e manga com sal, o que me valeu muito sermão porque limão com sal fazia mal ao fígado. 
As verduras não faziam parte da nossa mesa.  As saladas  portanto estavam fora dos cardápios. Até a década de 60, eu não lembro de ter visto verduras servidas em nossas mesas. Em compensação, tínhamos jerimum (de leite e caboclo), macaxeira, batata doce, mandioca, tomate, cebola.
Para temperar a comida utilizava-se: coentro, cebolinha, tomate, pimentão, alho, vinagre, banha de porco, pimenta do reino e colorau. Dona Julia, mãe de Tutu, que morava vizinho a casa de Dona Uila, atualmente  onde funciona a delegacia, tinha um canteirinho suspenso onde íamos comprar coentro e cebolinha. 
Canteiro de coentro e cebolinha
A nata era excelente tempero para alguns pratos. Bifes fritos na nata e também o seu uso como molho de macarrão misturado com queijo de coalho ralado são boas referências da minha memória gustativa.
As massas que passavam por nossa mesa eram basicamente originadas na produção das padarias locais através dos pães (aguado, sovado e recife) e no processamento artesanal e biscoitos. Pelos seus fornos também passavam nossos bolos e os assados maiores que as famílias levavam na falta em casa de um forno mais adequado à tarefa. Outros biscoitos processados pela indústria nos chegavam através das bolachas tipo ‘bolacha maria’ e cream cracker. O macarrão também fazia parte da dieta mas sua elaboração era muito simples na culinária doméstica.
Os nossos doces e guloseimas eram praticamente os de goiaba, banana, leite, buriti, geleia de manga, mel de engenho, rapadura, alfenin, batida, mariola, chouriço doce, espécie, quebra queixo, cocada e pirulito. Doces de goiaba, banana, caju e buriti também eram encontrados de forma industrializada  apresentados em latas, embalagens de madeira (tipo caixotinho) ou embrulhados artesanalmente.
As farinhas eram compostas principalmente de farinha de mandioca,  goma e pelo fubá. A farinha de mandioca era um acompanhamento por excelência.  A partir do milho produzia-se a farinha do milho e o fubá que tinham processamentos diferenciados conforme sua destinação.  O fubá, por exemplo, era uma farinha muito fina que  podia ser comida com mel, na banana machucada ou em outras iguarias que não lembro no momento. Era diferente portanto da que se usava em, por exemplo, no cuscuz. Os milhos processados em moinhos artesanais de uso doméstico bem como a goma de mandioca tinham múltiplas utilizações na confecção de alimentos disponíveis na nossa mesa. 

De manhã cedinho, canecos esperavam o leite fresco e espumante que saía do peito da va. Bebia-se ali mesmo no curral. Na mesa dacasa, o café da manhã estava servido. Tapioca, leite, cuscuz com nata, queijo, coalhada, café, leite e, em algumas residências ovos estrelados.Não esqueço o cheiro da café da manhã na casa de meu tio Sebastião no sitio São Pedro.
O almoço servido cedo tinha arroz, feijão, carne verde, carne de sol, galinha, peixe de água doce, capote, pato, carne de carneiro, porco, batata doce e outras coisas produzidas na região. Às vezes, macarrão. Alguma coisa doce depois do almoço e um cafezinho pra fechar a refeição. Quando tinha visita, sempre tinha galinha e às vezes também aos domingos. Algumas vezes, nos dias mais especiais, acompanhada de molho pardo. Era preciso ter um chiqueiro preparado para as visitas inesperadas.

Ao cair da tarde, era o jantar. Praticamente era similar ao almoço e algumas vezes servia-se sopa. Depois café, bolo, cuscuz, tapioca.
Antes de dormir era a hora da coalhada, do doce, um biscoitinho, café com leite ou puro para não dormir de estômago vazio. 
As refeições dos mais humildes pobres incluíam a caça e os peixes, pescados nos poços dos riachos ou nos açudes. Os peixes mais comuns eram a curimatã, a traíra e o piau.
O angu fazia parte de todas as mesas . Preparado com fubá de milho podia ser servido nos almoço e no jantar acompanhado de galinha, carne, caldo de peixe. O pirão de farinha era bem apreciado. O pirão de ovos feito na casa de minha vó Maria era especial com o tempero à base de pimenta do reino era irresistível.
As mulheres gestantes preparavam os chiqueiros separando as galinhas para o resguardo. Um mês de galinha acompanhada de arroz, angu, pirão.
A alimentação dos bebês nos seus primeiros meses era praticamente à base de leite: mingaus e papas. Era muito comum servir a papa ao bebê utilizando-se  o dedo. O prato era explorado a partir da beira para o seu interior. A expertise das mulheres ao utilizarem  o dedo para dar a papa ao bebê causava-me  admiração. Depois, muito depois, entrariam na sua dieta arroz de leite, banana, sopas e comida comum. Os sucos de frutas não eram corriqueiros e as verduras estavam fora de cogitação. As vitaminas praticamente não existiam porque não havia liquidificador. Minha vó trouxe de Fortaleza um liquidificador de alumínio movido a base de manivela que ajudou bastante na elaboração das nossas merendas.
Liquidificador manual similar ao que tinha na casa de minha vó Maria
Em posts anteriores publicamos algumas receitas do nosso cardápio local mas inúmeras outras encontram-se disponíveis na internet embora, em sua maioria, já tenham sido agregados novos elementos que antes não eram encontrados nas nossas cozinhas.
A nossa alimentação era saudável, não se conheciam os agrotóxicos nem tecnologias ainda que rudimentares, a disponibilidade dos alimentos estava vinculada diretamente à questão climática. Éramos uma comunidade pobre e basicamente dependente da agricultura e da pequena pecuária, tanto como fonte de renda quanto como supridora de alimentos. A precária atividade rural lastreava, em todos os sentidos, a nossa sobrevivência e as nossas relações sociais.  Os produtos que não eram colhidos e guardados em casa, eram adquiridos nas pequenas bodegas e nas bancas distribuídas no espaço da feira semanal.
Nossas mesas de madeira produzidas por um carpinteiro da localidade e/ou da vizinhança. Predominavam os formatos retangular e/ou quadrado. O tamanho variava com o tamanho do espaço e as necessidades da família. Como a grande maioria das casas não tinha copa, a sala de jantar congregava todas as funcionalidades dos serviços relacionados à alimentação menos as que dizem respeito aos afazeres da cozinha. As toalhas de mesa de uso diário eram de tecido de algodão, utilizando-se bastante o xadrez, eventualmente alguma outra estamparia,  e o plástico a que se chamava ‘encerado’ geralmente de uma só cor. Os pratos, travessas, xícaras e pires eram de louça comum e/ou ágata conforme as posses de cada um.  Algumas residências contavam com uma louça mais fina utilizada em ocasiões especiais. 
Compartilho com vocês algumas peças das casas da minha vó e da minha mãe que tenho comigo.
Peças de um jogo de café
Delicadeza do pires.
Biscoiteira

Meu primeiro pratinho de ágata. Deve ter uns 65/66 anos
Mantegueira de vidro
Floreira
Detalhe da floreira
Bandeijinha de servir água
OS TALHERES

Manusear os talheres sempre foi associado ao bom comportamento e a etiqueta à mesa. Antes do seu surgimento quando ainda se comia diretamente com a mão, o número de dedos que pegava na comida identificava a classe social.   Os nobres usavam apenas três dedos enquanto a plebe usava a mão inteira. Na Idade Média, a introdução do garfo para substituir a função dos dedos nas refeições trouxe um novo requinte à mesa. O garfo era um utensílio raro e luxuoso e durante muito tempo havia apenas um garfo na mesa para ser compartilhado por todos. Só depois de muito tempo passou a ser um objeto de uso individual. Popularizado no século XIX, o seu uso representava polidez, fineza e civilidade funcionando, portanto, como um elemento diferenciador entre classes sociais. A consolidação do seu uso traçou novas regras. Comer com os dedos passou a ser visto como uma atitude canibal, anti-higiênica e inadequada para um ambiente onde se estabeleciam relações sociais. Posteriormente, entrou em pauta a questão da saúde como um reforço às novas regras. Concomitante com a evolução dos utensílios da mesa foi evoluindo também a forma e a disposição dos talheres e aperfeiçoando-se o disciplinamento do seu uso.
No sertão dos anos 50/60, os talheres eram feitos de metais e podiam ter modelos bem simples ou com algum detalhe. Às vezes, os cabos eram de madeira. Enquanto o garfo e a faca tinham funções específicas, as colheres tinham funções múltiplas: tomar sopas e alimentos líquidos, servir-se de sobremesas, adoçar café, chá, leite bem como ser utilizada para servir a alimentação das crianças e dos menos treinados no uso do garfo. Eram muito populares no cotidiano doméstico as colheres de latão. De cor dourada elas demandavam cuidado para manter aspecto de novas. A faca foi, entre os talheres, o primeiro a ser introduzido pela sua própria utilidade no trato com os alimentos. O seu uso vai alterando-se ao longo do tempo. O garfo foi o último talher a ser introduzido.. 
Alguns modelos de garfo utilizados no período. Todos eram de metal. Os mais comuns eram de alumínio e alpaca. As colheres de latão dourado eram bastante utilizadas. 
Talher de alpaca com cabo de madeira

Detalhes de uma faca
Garfos de alumínio
Colheres de alpaca
Talheres dos anos 50
Talheres de latão
Os faqueiros com uma variedade maior de talheres e de melhor qualidade começaram a se popularizar entre os fins dos anos 60 e inicio dos anos 70. Ainda assim, as facas não tinham a famosa serrinha de forma que algum tempo depois elas ficaram obsoletas. Como o comércio tem uma dinâmica própria e muita criatividade para atender novas necessidades, em nossa vizinha Cajazeiras surgiu um artesão especialista em colocar serrinhas nas facas.  Não lembro o seu nome mas sei que foi ele quem botou serrinha nas facas do faqueiro da nossa casa. 
Faqueiro
 No período que ora registramos, o uso dos talheres convivia com a prática de comer com a mão embora em algumas residências essa prática já não era aceita na mesa. Nestas, a concessão possível era comer de colher ainda assim era uma atitude reservada às crianças pequenas e/ou a algum eventual comensal ainda não treinado no uso completo dos talheres. Quem dessa época não conviveu com o famoso ‘capitão’, ou seja, com a prática de fazer bolinhos de comida e leva-los diretamente à boca principalmente utilizados com crianças. Essa prática resistiu ainda durante algum tempo, mas não sobreviveu à imposição das novas regras da mesa.
No Ipaumirim dos anos 50 era a sortida bodega de Adolfo Augusto de Oliveira abastecia o município vendendo objetos utilizados na mesa e na cozinha. Geralmente o período de compras era logo após a safra de algodão. Quanto melhor a safra, mais panelas, bules, pratos, talheres, farinheiras, etc.. eram vendidos.
Entre os mais humildes, a introdução dos talheres foi bem mais lenta e haviam casas que ainda não tinham assimilado essa prática.
Os copos dos moradores da casa eram basicamente de alumínio sendo os das crianças geralmente coloridos e com o nome gravado. Os demais eram de vidro, tipo copo americano, reservado para visitas. Em ocasiões mais formais, a água era geralmente servida em porta copos. No cotidiano, era mais comum dirigir-se à cantareira onde estavam os potes, optar pelas quartinhas de barro e posteriormente pelos filtros quando estes foram introduzidos.
Filtro de água

Entre o pote, a quartinha e o filtro.

Cantareira
Quartinha
Porta copo esmaltado
Porta copo de metal
MOBILIÁRIO
A grande maioria das salas de jantar tinham um mobiliário muito simples. Uma mesa de madeira, uma petisqueira, cadeiras e tamboretes de madeira e/ou de madeira e couro, geralmente de confecção local, completavam os móveis da maioria das salas de jantar que também podiam contar com uma cantareira e um lavatório de ferro.  Como não tínhamos água encanada, um lavatório era essencial.
Na década de 60 foram introduzidos os móveis de fórmica vendidos no comércio de Cajazeiras – nosso espelho de modernidade.   Mesa, cadeiras e armário constituídos com revestimento de fórmica e a base de metal. Chamava-se, na época, ‘moveis de estilo funcional’ ou móveis ‘pé de palito’ por conta do design mais leve e mais fino das peças que davam sustentação aos móveis. As geladeiras à querosene eram muito raras de forma que poderiam ser consideradas um bem inacessível para a maioria. 
Cristaleira
Armário de usos múltiplos
Petisqueira
Lavatório

Lavatório
Propaganda de geladeira a querozene
Mesa e cadeiras de fórmica

Bufê de fórmica

OS BANQUETES

Em todos os níveis sociais, participar de uma mesa de refeições é um indicador de pertencimento tanto no contexto da família quanto na comunidade mais ampla. Comer junto é uma manifestação explicita de unidade, coesão, legitimação de posições e interesses comuns.  Tem uma expressiva função social que vai além da aparente solidariedade e integração entre os comensais.  Os banquetes são reuniões festivas sublinhadas por uma certa solenidade que estreitam laços, defendem interesses, simbolizam acordos e celebram contratos ainda que não explícitos.  Envolto no clima festivo e sob os auspícios da hospitalidade compartilha-se um jogo em que se misturam diferentes sentimentos. O objetivo subjacente à comensalidade amistosa é uma rede de interesses que transforma esse espaço de sociabilidade num espaço de negociação. Mais do que a comida, importam os fatos, lugares, coisas e pessoas que compartilham a mesa.
Assim como no ambiente doméstico, o banquete representa hierarquias e relações de poder que se expressam na distribuição dos lugares que cada um ocupa na mesa, na deferência e no tipo de alimentos servido a cada conviva quando, por exemplo, são servidos diferentes pratos numa mesma refeição.  
Transcendendo essas dimensões, o prazer de comer funciona como um amálgama entre diferentes propósitos e a cordialidade contribui com a harmonia aparente. 
Os banquetes sempre acontecem em torno de algum evento. Hoje, refletindo sobre as motivações e os comensais dos banquetes que eu tive a oportunidade de participar no sertão entre os anos 50 e 60, observo o componente político e o jogo de interesses subjacente. Geralmente os banquetes eram motivados por um evento social, como casamentos, por uma cerimônia cívica em datas comemorativas e ainda por razões eleitoreiras principalmente por ocasião de campanhas políticas. Em todos eles estavam presentes e recebiam tratamento privilegiado as mesmas pessoas que representavam o poder local.
Na mesa não faltava galinha, carne, macarrão, arroz e farofa. Tudo feito com simplicidade e capricho. O que marcava a diferença era a fartura. A solenidade requerida nos banquetes não contemplava a buchada, o sarapatel, a panelada e afins. 
"O nosso sertanejo disfarça, esconde, mistifica sua culinária quando tem visitas. Crê ficar desonrado servindo coalhada com carne de sol, costelas de carneiro com pirão de leite, paçoca com bananas, milho cozido, feijão verde, o mungunzá que o africano ensinou e a carne moqueada que ele aprendeu com o indígena". (CASCUDO, 1984, p. 27)
A sobremesa eram geralmente doces de produção caseira. Não se serviam sucos. Uma cerveja – mesmo quente – não devia faltar. Refrigerantes não eram comuns. Na mesa posta, os alimentos aguardavam que as mulheres servissem os convidados. Eventualmente era proferido algum discurso quando isto não tivesse acontecido durante o evento principal que sempre antecedia a refeição.  Banquete em temporada de moscas era uma temeridade. Os abanos e as rodilhas num ritmado ‘pra lá e pra cá’ tentavam amenizar a fúria dos insetos e manter um mínimo de dignidade ao banquete mas atrapalhavam a concentração e a conversa entre os comensais.
No caso dos casamentos, a emoção aflorava no momento da bênção. Os pais, geralmente sentados, aguardavam o momento em que os filhos se ajoelhavam sobre uma toalha branca para pedir a sua bênção após a cerimônia religiosa.  O ajoelhar-se realçava sobretudo o respeito dos filhos diante dos pais, a ruptura entre a condição anterior e a atual e os auspícios de uma nova vida abençoada pelas famílias. A seguir, vinha o banquete e finalmente, quando fosse o caso, um belo forró pé de serra no chão de barro batido dos terreiros e/ou das salas onde se dançava.  Daí em diante é o momento esperado pela juventude presente. Cachaça, dança e namoro são essenciais para a moçada. Vez por outra, respingar levemente água sobre o chão de terra era providencial para evitar que a poeira levantasse. E haja animação!
Estive em banquetes memoráveis tanto na sede do município quanto na zona rural  tanto por ocasião de casamentos quanto de eventos de outra natureza. Particularmente, lembro de um que participei por ocasião de um evento cívico realizado na casa de Joaninha Irineu, professora rural, que dava aulas na própria casa à margem da estrada velha entre Ipaumirim e Cajazeiras, próxima ao local onde funcionava um posto fiscal de fronteira entre Ceará e Paraíba.
Joaninha era professora de uma escola radiofônica vinculada à Diocese do Crato que fazia parte do  Movimento de Educação de Base – MEB que visava à formação integral de adolescentes e adultos das áreas menos desenvolvidas, assessorando-os com cursos, ministrados principalmente por meio de programas radiofônicos. O Movimento de Educação de Base (MEB), fundado em março de 1961, era um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que tinha como objetivo a promoção humana integral e a superação da desigualdade social por meio de programas da educação popular libertadora inspirado nos princípios filosóficos de Paulo Freire. Em Ipaumirim,  era coordenado por Padre José Ismar Petrola de Melo Jorge  recém empossado vigário local. A repressão política do golpe de 1964 destruiu o movimento. Em 1970, o MEB ressurgiu mas com outras propostas condizentes com a ditadura. 
Quando chegamos, de jeep, os alunos aguardavam enfileirados. Uma bandeira do Brasil hasteada exaltava o clima de civismo no ambiente. Quando Dr. Francisco Vasconcelos de Arruda, deputado estadual que representava a nossa região,  desce do carro,  as crianças cantam o hino nacional. Depois, vieram os discursos. Política e igreja juntos é o que se espera para legitimar um evento. O banquete foi impecável principalmente para mim porque me cederam um lugar que sobrou na mesa.  Eu, que sempre fui ‘biqueira’ para comer, nesse dia comi tanto que chamou a atenção de todo mundo. Meu comportamento guloso valeu um carão e um castigo quando cheguei em casa.
Também estive presente por ocasião de enfadonhos banquetes políticos mas nenhum me deixou lembranças. Talvez porque eu não tive lugar na mesa.
MLUIZA
Recife
5.09.2018

AGRADECIMENTOS
Esse post só foi possível pela colaboração de Antocildo Barbosa, Fátima Gomes Lemos, Federalina Quaresma, Flávio Lúcio Bezerra de Oliveira, Gildaci Leandro, Gutemberg Sampaio Torquato, Irma Macedo Suarez Cavin, José Ribeiro, Josenira Holanda Brasil, Lucenígia Maia de Moura, Lúcia Dore Gonçalves, Luciene Gonçalves Nóbrega, Luiz Leite da Nóbrega Neto e Vanuza Brasil.

BIBLIOGRAFIA
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BARBOSA, Talita Prado. Antropologia e gastronomia: a identidade de ser brasileiro a partir da alimentação. UNESP/FFC. Disponivel em https://docplayer.com.br/8916333-Antropologia-e-gastronomia-a-identidade-de-ser-brasileiro-a-partir-da-alimentacao.html
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BRYSON, Bill. Em casa: uma breve história da vida doméstica. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
CASCUDO, Luis da Câmara. Viajando o sertão (1984). Natal. 1984. (Coleção Mossoroense, série B, Número 1138).
COUTINHO, Andrea Lima Duarte. Farinhada e comensalidade no semiárido baiano: hábitos alimentares e identidade sertaneja.   Disponivel em: https://docplayer.com.br/8916635-Farinhada-e-comensalidade-no-semi-arido-baiano-habitos-alimentares-e-identidade-sertaneja.html
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EDMILSON QUIRINO DE ALCÂNTARA: A LEMBRANÇA ALEGRE DE QUEM TEM APREÇO PELO TRABALHO QUE REALIZA.

Conversar com Edmilson é sempre muito agradável. Apesar da memória já comprometida ele adora falar sobre sua experiência como dono de bar....