MLUIZA |
Às vezes, quase sempre, minha memória funciona
como uma carta extraviada que vai dar nos endereços e lugares mais estranhos
resgatando coisas que eu jamais imaginaria que em algum lugar estariam
guardadas. Assim, me chegam personagens, odores, expressões, recortes e afetividades.
A minha memória mais expressiva é a
memória auditiva talvez por ter sido criada sob as bênçãos da tradição oral
que, em mim, sempre se sobrepõe ao visual. E mesmo quando estão associados é sempre
o auditivo que se sobrepõe ao visual. É mais fácil eu não lembrar o que vi, mas
é bem mais difícil esquecer o que eu ouvi. A oralidade sempre exerceu um
fascínio especial sobre mim. Eu lembro de expressões banais que ouvi em
qualquer lugar. Ainda fico injuriada com os diálogos interrompidos com as
paradas de ônibus. Desce o passageiro, acabou a história. Presto atenção a conversas
em balcões de lojas, caixas de supermercado, filas de banco. Quando eu era
criança, Dona Odete, engomadeira que passava a roupa lá de casa me maravilhava.
Enquanto abanava seu ferro em brasa e passava ritualmente as roupas, ela me
contava os capítulos da novela de rádio. Eu ia lá na sua casa só para ouvi-la.
Que riqueza de detalhes, que ritmo e entonações ela imprimia. Sua narrativa era
muito mais expressiva que a interpretação dos artistas acompanhados pela
rudimentar sonoplastia das novelas de rádio. Nos compridos bancos da calçada alta
da antiga casa do sítio do meu avô, Sítio São Pedro, eu cresci ouvindo estórias
de trancoso. Dois moradores do sítio, Adelson e Chico Cândido, eram exímios
contadores de estórias. Novenas, renovações, benditos, conversas em velórios,
tudo isso foi ficando gravado sem esforço e sem que eu percebesse. Eu tinha, o
que se chamava popularmente, oiças de tuberculoso. Ouvia tudo, mas nunca tive
ouvido absoluto, diga-se de passagem. Tampouco era proposital. Nunca escutei
atrás de portas. Era uma coisa espontânea, uma atenção auditiva aguçada. As
músicas da difusora, o palhaço anunciando o circo, brincadeiras, expressões
ditas ocasionalmente em lugares imprecisos. Outro dia, eu lembrei de um tocador
de sanfona que se chamava Zé Dió. O serviço de alto falante do parque de
diversões, em IP, tinha uma diminuta cabine onde ficava o microfone e mal
cabia uma pessoa de pé. Não sei como ele conseguia estirar o fole da sua
sanfona dentro daquele cubículo. Entre
os brinquedos daquele parque popular, onde reinava muita alegria e nenhuma
segurança, Zé Dió era uma estrela. Quando saía molhado de suor da minúscula cabine,
o pessoal gritava: - Tomou sopa, Zé Dió? Mais que dos brinquedos do parque, eu
lembro dessa expressão. Assim como de tantas outras que, por acaso, ouvi pelos
caminhos. Foi a minha memória auditiva que me fez guardar os toques do sino da
igreja de IP como uma marca particularmente importante na pequena comunidade
interiorana. Longe dos grandes campanários das igrejas suntuosas que permitiam
uma riqueza de sons, o modesto sino da nossa comunidade tinha seus códigos sonoros
compreendidos por todos. Quem vivia perto da igreja identificava com clareza a
linguagem dos sinos no tempo em que eles não tinham a função de relógio, mas
marcavam celebrações e momentos de cunho religioso e/ou civil. As suas
badaladas funcionavam como convite, saudação, reverência ou lembrete. Avisava, em
toques ritmados, a missa, a procissão, a novena e o catecismo. Saudava os momentos solenes das festividades
religiosas com um repicar festivo característico da chegada das procissões de
volta à igreja nas festas religiosas. Quem não lembra o toque plangente na hora
do Ângelus, às 6 da tarde, funcionando como um ordenamento da religiosidade
individual e/ou familiar indicando que esse era um momento de recolhimento e
graça. O toque das seis horas celebrava o fim do dia e a chegada da noite plena
de desafios e ousadias.
O sino tocando também avisava falecimentos e
acompanhava enterros. Para os adultos,
um toque mais plangente onde a sonoridade ia esmaecendo até ser novamente
repetida. Angustiava—me o toque repicado dos enterros de anjinhos no seu caixão
azul. Como passavam anjinhos na nossa porta! Pequenos cortejos ou mesmo um
singular caixãozinho sobre o ombro do pai. Essa é uma das imagens mais doídas
que guardei da minha infância. A mortalidade infantil era absurdamente normal.
Eu nunca soube porque - mesmo na minha ingenuidade - aquela cena me intrigava
tanto. O sino repicava rápido e insistentemente. Muito tempo depois, eu li
em algum lugar que esse toque repicado, muito próximo a alguns toques
utilizados em festividades religiosas, tinha um significado preciso: a morte de
uma criança significava a chegada de uma alma ao céu e, do ponto de vista da
religiosidade, este seria um motivo de celebração.
O toque a rebate, toque rápido e contínuo, era um
chamamento e um alerta sobre algum acontecimento imprevisto e perigoso. Avisava
a comunidade que algo não estava bem e necessitava do apoio e ação coletiva. Era um toque aflito, uma indicação de urgência. Lembro claramente um
incêndio, ou talvez até tivesse acontecido mais de um, nos armazéns de algodão da
Souza Fernandes e da solidariedade da comunidade que avisada pelo sino
rapidamente se mobilizou para debelar o fogo. Talvez tenha sido este o momento
mais marcante de solidariedade coletiva que vi em Ipaumirim.
Na semana santa, o sino se recolhia. Era a hora da
matraca com seu barulho inconfundível. Constituída por uma base de madeira e de
cada lado um pegador de metal daqueles utilizados em malas de madeira era
operada pela mão diligente do sacristão. Teco-teco-teco-teco-teco.... E haja
disposição e braço para manter o ritmo. A tradição do uso da matraca remonta ao
século XVII quando a Igreja, em sinal de luto, proibiu o uso do sino entre a
quinta-feira santa e o domingo de páscoa.
MATRACA RÚSTICA |
Primos pobres dos sinos, os chocalhos e as sinetas
fizeram parte dos sons da minha infância. O barulho do chocalho quando o gado
vinha, de tarde, tangido pelo vaqueiro na parede do açude em direção ao curral onde
passaria a noite. Cedo da manhã, a orquestração entre o mugido do gado, o
barulho do chocalho e dos baldes de metal associados às vozes dos vaqueiros
eram a sonoplastia perfeita para o ritual de ordenha. Também outros animais
usavam chocalhos. As ovelhas, por exemplo, tinham seus pequenos chocalhinhos
mas, pobrezinhas, nem de longe competiam com a solenidade e a pompa do gado.
E, enfim, as sinetas. Usadas nos rituais
religiosos, algumas eram simples e/ou constituíam-se de um jogo de três ou quatro
sinetas integradas num só instrumento. O seu toque indicava momentos de
contrição e respeito. Nas escolas, as sinetas ordenavam comportamentos e
rituais. Marcavam a hora de fazer a fila para cantar algum hino conforme
determinava o momento. Antes da aula, para sair ou voltar do recreio, e
finalmente para encerrar as atividades do dia.
Essas
sonoridades aparentemente banais são muito mais que códigos sonoros aleatórios.
Elas representam disciplinamentos, ordenamentos e alertas para a composição de modelos
de comportamento coletivo que norteavam a vida na comunidade.
Com o
tempo, o uso do sino ficou restrito. Reina na igreja ao lado da minha casa, o
barulho insuportável, impessoal e intermitente de um relógio que enche o saco
de meia em meia hora perturbando a madrugada de quem precisa acordar cedo no
dia seguinte e de uma difusora gasguita que nunca soube nem ouviu falar no que
é poluição sonora.
MLUIZA
RECIFE
24.06.2018