Foi um baita susto. Quando Millôr Fernandes, 82
anos, recebeu PLAYBOY no seu estúdio em Ipanema para a primeira parte desta
entrevista, ele não falava coisa com coisa. O humorista-escritor-dramaturgo-poeta-etc,
dono de uma produção de arrepiar que inclui 28 livros de prosa, 14 peças
teatrais, 11 musicais, nove roteiros para cinema e mais de 80 traduções
(Shakespeare, Sófocles, Brecht, Cervantes, Vargas Llosa, entre muitos outros),
queixava-se de fortes dores de cabeça. “Não sei o que está acontecendo, eu
nunca tive isso…”, dizia ele, com a mão segurando a testa. E em seguida começou
a declamar um trava-língua surrealista: “O ovo que desova no poente é novo?”.
Ou coisa assim. Esquisito. Muito esquisito.
Impossível fazer a entrevista. A equipe da revista,
o diretor de redação Edson Aran e a fotógrafa Camila Marchon, tomaram apenas um
café e se despediram. O jornalista Luis Gravatá, de O Globo, que visitava o
humorista, nos acompanhou até a porta. Estava preocupado. “Com o Millôr a gente
nunca sabe, porque ele vive fazendo brincadeiras… mas ele está esquisito.”
Estava mesmo.
Naquela noite, Millôr acabou num centro de tratamento intensivo gritando de dor. Os médicos fizeram todo tipo de exame, mas não chegaram a nenhuma conclusão satisfatória. Falou-se num princípio de isquemia cerebral, que nunca foi confirmada. Até hoje ninguém sabe o que Millôr teve. Talvez, quem sabe, o cérebro do homem tenha entrado temporariamente em pane depois de anos de sinapses brilhantes. Vai saber. Felizmente, no nosso segundo encontro, dois meses depois, Millôr era outro. É fato que andava com alguma dificuldade, única sequela daquela noite, mas pensava, falava e troçava com aquela agilidade notória e sempre surpreendente.
Engatava
citações eruditas a piadas maldosas, saltava da pesca de atum a considerações
sobre urbanismo, teorizava sobre o frescobol e, a seguir, se deixava levar por
digressões filosóficas. Um autêntico e legítimo Millôr, enfim, retrato do homem
que em 1969, ao lado de profissionais e amigos como Jaguar, Tarso de Castro,
Sérgio Cabral, Ivan Lessa, Sérgio Augusto, Ziraldo, entre muitos outros
ilustres colaboradores, ousou criar o mais influente, brilhante e anárquico
tablóide do país: O Pasquim. A entrevista rolou sob o olhar atento de outro
amigo, o jornalista Paulo Francis, cuja foto se destaca em meio aos pôsteres
que atulham o estúdio. Falamos de tudo um pouco. Mas esse pouco, no caso do
Millôr, é muito mais que tudo.
Da última
vez que a gente veio aqui, você deu um susto na gente. O que aconteceu?
MF - Eu não tenho a menor noção do que aconteceu. Não me lembro. Nunca tive dor de cabeça e devo ter tido dores terríveis naquele dia, porque todo mundo registrou. Vieram duas ambulâncias me pegar. Não foi uma não, foram duas! Uma perfeição! Quando acordei, dois dias depois, fiz todos os exames possíveis e imagináveis e os médicos não conseguem me dizer quê que era.
MF - Eu não tenho a menor noção do que aconteceu. Não me lembro. Nunca tive dor de cabeça e devo ter tido dores terríveis naquele dia, porque todo mundo registrou. Vieram duas ambulâncias me pegar. Não foi uma não, foram duas! Uma perfeição! Quando acordei, dois dias depois, fiz todos os exames possíveis e imagináveis e os médicos não conseguem me dizer quê que era.
Eles não sabem o que aconteceu com você?
MF - Não! Não sabem! Porque a medicina é fabulosa até
o momento em que admite o desconhecido. O que ela não conhece, não pode curar,
então você, ó… se estrepa.
E como você está agora?
MF - O meu problema agora são as pernas. Eu comecei a
andar com dificuldades, mas não tô me entregando não, você entende? Hoje mesmo
eu fiz uma hora de ginástica específica. Agora, minha musculatura está
perfeita. Joelho, perfeito. Circulação, perfeita. Eu vi tudo lá no computador.
Meu problema é que tenho paúra de médico. Meu grande amigo, o [escritor] João
Cabral de Mello Neto, que teve dor de cabeça a vida inteira, tinha que tomar
seu remédio diário. Mas eu nunca tomei remédio na minha vida. Uma aspirina
influencia alguma função do seu corpo, então prefiro não tomar.
Com o presidente Lula em segundo mandato, você está mais desanimado ou mais estimulado pra fazer seu trabalho?
MF - Olha aqui, eu vou te dizer uma coisa: pode
parecer uma pretensão minha, mas aquele cara que foi enforcado na cruz… Não é
enforcado na cruz, né? É crucificado! [Risos.] Bom, ele dizia uma frase que é
minha: “O meu reino não é deste mundo”. Eu não tenho nada a ver com o Lula, eu
não tenho nada a ver com o Alckmin. Nada. São um bando de filhos da p(*)!
Todos! Todos, todos, todos! Ninguém que ambiciona o poder deixa de ser um filho
da p(*)! Pode ser um pouco mais ou um pouco menos. Mas o homem de bem, no
sentido genérico e universal da palavra “bem”, não ambiciona o poder.
Mas o poder não vem só da política. Quem tem uma coluna como a sua também tem poder… MF - Bem, eu nunca ambicionei o poder. No meu caso, você tem um poder que vem naturalmente com o passar dos anos. Se não você não estaria aqui me entrevistando. Eu evitei a minha vida inteira a popularidade. Eu gosto é da notoriedade. A sua notoriedade não vai mudar as pessoas, mas você se sente mais amparado. Se você vai a um restaurante, o cara te trata melhor. Ele não sabe bem o que você é, mas sabe que você deve ser bem tratado. Isso eu gosto! Mas voltemos ao Lula…
Então, fica mais fácil ou mais difícil trabalhar?
MF - Eu nunca tive esse problema. Essa pergunta é
recorrente. As pessoas olham e dizem: “Que incrível! Tem humor ali”. Mas, ao
contrário, me desagrada muito essa situação de crise em que, mal ou bem, você
acaba tendo de falar da política. Mas se você pegar a maior parte do meu humor,
ele é aleatório, sobre coisas maiores, sobre coisas menores, sobre a vida,
sobre o mal, sobre o bem. Tem um grande humorista e desenhista que dá bananas
pra tudo isso. Recentemente, recebi um livro dele. É o Quino, que hoje vive na
Espanha. Ele não dá bola pra isso não, faz outras piadas lá, mas que são sempre
de uma observação e de uma densidade extraordinárias. O humor tem um campo
vastíssimo. A política, o desastre, você tem que comentar ocasionalmente, pois
em geral trabalha num órgão de imprensa que tem periodicidade semanal ou
diária. O humorista menor – que você nem pode chamar de humorista – é quem faz
piadas, gracinhas, com essas coisas. Mas mesmo essa pessoa está almejando algo
maior. Eu mesmo gostaria de vender os 500 mil livros que o Paulo Coelho vende.
Estaria muito satisfeito. Mas quero vender sem me afastar do que eu quero
dizer. E a maior parte das pessoas não entende o que eu faço.
Mas o seu público não é tão pequeno assim…
Mas o seu público não é tão pequeno assim…
MF - É! É pequeno sim! E se você trabalha na China e
tem 100 milhões de leitores, seu público é pequeno. No Brasil, um público de 1
milhão é pequeno. E é duro ter 1 milhão de leitores.
Na última eleição, a ética foi muito discutida e muitos artistas e intelectuais saíram a campo defendendo posições que, muitas vezes, compactuavam ou perdoavam a falta de ética. O que você achou disso?
MF - Olha aqui, é muito difícil classificar, porque
entre os que estão fazendo isso, tem de tudo. Tem os inocentes, intelectuais
incultos que não sabem nem o que é ética. Tem os que fazem isso por interesse
próprio, para darem-se bem com o poder. Tem o safado, também intelectual, mas
safado que está pura e simplesmente c(*)ndo pra ética. Então é difícil
classificar. Agora, também é muito difícil dizer o que é ética. O que é ética?
Eu estou lendo um livro sobre o Stálin. Em determinada época, o cara mandou
matar 10 milhões de camponeses. E matou em nome de quê? Da coletivização, da
industrialização. Ele matou aqueles sujeitos não apenas para salvar a União
Soviética, não apenas o seu país, mas o mundo, o universo. Agora, ele estava
fazendo isso, de uma certa forma, dentro da maior ética. O que importa matar 10
milhões se o objetivo final é salvar a humanidade? Em suma, é tudo muito
complexo e passível de ser refutado. Eu mesmo, por ser carioca, já tenho uma
ética bastante relaxada.
A ética do brasileiro é naturalmente relaxada?
A ética do brasileiro é naturalmente relaxada?
MF - Mas muito… bastante… Eu, por exemplo, sempre fui
muito relaxado em relação ao sexo. Eu nunca tive a consciência que a minha
geração tinha. Eu tive uma grande sorte porque meus pais morreram cedo. Meu pai
morreu quando eu tinha um ano, minha mãe morreu quando eu tinha seis. Então
nunca ninguém me levou pra igreja. Nunca ninguém me disse que se eu me
masturbasse eu ia ficar cego ou leproso. Ninguém me disse que eu não devia
comer uma prima, você entende? Irmã, sim. Mas prima é pra isso mesmo…
Você comeu muita prima?
MF - Ainda não dava. Essa fase da minha vida, quando
todo mundo em volta resolveu morrer, terminou quando eu tinha dez anos e eu caí
no mundo. Ou na vida, como querem outros… Mas aprendi muito, sobretudo com
minhas primas espanholas. Agora, essa é uma ética muito carioca, você entende?
Num país frio, tirar a roupa já é uma dificuldade. A temperatura pede uma ética
mais puritana [risos].
Mas isso não tem a ver com a religião? O protestante é mais individualista, portanto, mais ético e mais capitalista, enquanto o católico é mais esculachado mesmo?
MF - Eu não saberia nunca responder isso, pois tenho
dificuldade de pensar ideologicamente. Eu acho a ideologia um bitolamento da
inteligência. Se você é católico, tá f(*), você é católico, pronto! Você pensa
naquela linha católica. Quem não pensa católico é um filho da p(*). É a mesma
coisa com o presbiteriano. Você me diz assim: “Aquele cara é um grande pensador
marxista”. Então ele não é pensador, é um propagandista do marxismo. O Tristão
de Atahyde era conhecido como grande pensador católico. Isso não é nada
pensador… Pensador é o cara que vai pensando numa linha até o momento em que
esbarra numa coisa e muda a maneira de pensar.
Mas no geral a esquerda anda pensando menos, não anda? A esquerda ficou mais burra? MF - Não, mas eu acho o seguinte: antigamente eles estavam no poder, mesmo que fosse apenas o poder intelectual, difuso. Pra começo de conversa, você só podia ser de esquerda. Se não fosse, era de direita, porque eles taxavam. E direita o que era? Era o filho da p(*) que queria comer criancinhas no meio da rua. Eles não. Eles eram os puros. Você vê agora esse movimento por indenizações para quem fez luta armada. O pessoal botou uma pistola na cintura e foi lutar pra quê? Pra tomar o poder! Pois bem, aí a coisa não deu certo e eles pedem indenização?! Então eles não estavam fazendo uma rebelião, estavam fazendo um investimento [gargalhadas].
Já que você falou em arma, na época do plebiscito do desarmamento [2005], você assumiu uma posição contrária à do governo e também de vários amigos seus, como a atriz Fernanda Montenegro, por exemplo. Isso de alguma forma afetou a amizade de vocês?
MF - Eu não tomo conhecimento. E tenho a impressão
que, no caso dela, ela também não toma. Ela foi contra, eu fui a favor. Acabou.
Aquela coisa tinha um componente complicado que era o lobby dos fabricantes de
armas mas, como você vai ser a favor do desarmamento geral, se o Estado não te
dá a menor garantia para que você possa andar na rua? Eles gastam tanto
dinheiro pra fazer presídios de segurança máxima, quando deviam gastar para
fazer ruas de segurança mínima, não é verdade? [Risos.]
O humor, de uma maneira geral, não é muito condescendente com o presidente Lula?
MF - Eu não posso te dizer, porque eu falei mal de
todos eles, escrevi sobre o Sarney e também sobre o Fernando Henrique. Agora,
se o Lula é um analfabeto, o Fernando Henrique é um analfabeto barroco. Não
estou brincando, não. Se você pegar o bestialógico dele, puro e simples,
daquele livro que ele escreveu, você não consegue entender nada! Eu selecionei
um trecho do livro dele e publiquei. Aí uma amiga minha, que estudou com ele,
me disse: “Millôr, você disse que escolheu o trecho por acaso e eu não
acreditei. Mas aí fui reler o livro e é tudo assim, você tem toda razão. Agora,
Millôr, eu estudei com esse homem, como é que eu acreditava nele?”. É que
quando você tem 18, 20 anos e está na frente de um professor de 30, 35 anos,
ele é uma estátua. Você acredita nele. Quando ele diz uma coisa complicada e
você não consegue compreender, você pensa que o defeito é seu. Você faz um
esforço, vai pra casa e aprende. É a mesma história com o Machado de Assis.
Você é emprenhado desde cedo de que ele é o maior escritor do mundo. Mas você
não conhece outro… [Risos.]
Você tem uma certa implicância com o Machado de Assis…
MF - Não!
Você tem uma certa implicância com o Machado de Assis…
MF - Não!
Como não? Tem sim!
MF - Não é implicância porque parece que eu estou com
raiva, né? Não é isso. Você pode dizer implicância, mas o que eu tenho é um
certo desdém. Essa discussão se a Capitu deu ou não deu é como discutir o sexo
dos anjos. Eu fiz um artigo sobre Dom Casmurro. Algumas pessoas me apóiam,
outras não. Mas é como se eu estivesse falando mal do Machado de Assis e não é
isso. É que eu publiquei dez ou 12 frases do romance provando que ele, dom
Casmurro, é homossexual. Eu não digo “bicha”, que é pejorativo. É um
homossexual, entende? E naquela época, ele tinha que ser enrustido porque,
infelizmente pra ele, ainda não havia o movimento gay [risos]. Agora, veja bem,
daí em diante eu fiz uma extrapolação que me foi natural. Quem é Machado de
Assis? É um mulato, filho de uma lavadeira, com todo um temperamento de querer
ficar bem na sociedade. E que eu saiba – pode até ser ignorância minha, admito
– mas que eu saiba, não tem mulher alguma na vida dele. Ele não comeu ninguém!
E eu tenho um certo desconforto com homem que não come ninguém. Eu acho que o
homem tem que comer alguém [gargalhadas].
Mas o Lula foi esculhambado ou não foi?
MF - Esculhambou, o pessoal esculhambou bastante.
Agora, veja bem, eu cheguei à conclusão de que ele é um fronteiriço. Eu, por
exemplo, sou um fronteiriço topográfico. Se você me deixa numa porta giratória,
eu volto pro mesmo hotel [gargalhada]. Agora, o Lula é total. Uma
característica do fronteiriço é que ele não registra. Ele começa a falar e, na
décima frase, já não sabe o que disse no início. Agora, paradoxalmente, ele tem
toda a possibilidade de fazer um gol, pois já passou pelo crivo da
desonestidade, então ninguém mais vai ter coragem de cobrar isso de novo. Se
ele conseguir colocar meia dúzia de ministros que lhe dêem respaldo, ele pode
dar certo…
Então você está otimista?
MF - Eu sempre fui otimista, senão eu não estaria
vivo [risos]! Eu tenho uma frase escrita há uns 200 anos do sujeito que salta
do décimo andar de um prédio e que, quando passa pelo segundo, diz: “Até aqui,
tudo bem!” [gargalhadas].
O Angeli deu uma entrevista pra PLAYBOY e ele faz uma divisão entre o humor carioca e o paulista. Ele diz que o humor carioca belisca a bunda das pessoas enquanto o humor paulista acerta… Acerta?
MF - É… acerta! Sendo o Angeli, ele deveria ter dito que o humor carioca belisca e o humor paulista enraba…
O Angeli deu uma entrevista pra PLAYBOY e ele faz uma divisão entre o humor carioca e o paulista. Ele diz que o humor carioca belisca a bunda das pessoas enquanto o humor paulista acerta… Acerta?
MF - É… acerta! Sendo o Angeli, ele deveria ter dito que o humor carioca belisca e o humor paulista enraba…
Deve ter sido timidez dele [risos]. Mas o sentido é esse mesmo. Você concorda?
MF - Olha, eu não sei o que dizer disso, porque eu não vejo essa diferença. Talvez exista uma diferença apenas editorial, já que as pessoas do Rio têm mais divulgação. Alguns nomes começam no Rio e passam para São Paulo, enquanto quem começa em São Paulo às vezes fica restrito por lá. O Angeli é um dos poucos que conseguem passar. Mas o Chico Caruso, que está aqui, passa para o Brasil inteiro. O Paulo Caruso não passa. É uma questão geográfica. Mas a diferença de humor não existe. O que o Rio tem de característica especial? Como os paulistas dizem, o Rio é um balneário, as pessoas estão pouco se lixando pro que os outros pensam. Eu me lembro quando o Krushev, aquele assassino, tomou o poder na União Soviética. Ele foi pros Estados Unidos e visitou Hollywood. Sumiu lá. E ele disse uma coisa assim: “Poxa, que formidável essas mulheres! Na União Soviética não temos mulheres assim, são todas camponesas usando botas pesadas”. Um mês depois, era lançada em Paris a moda de botas para mulheres. E pegou. Mas foi em Paris, não é? [Risos.] O Rio, por exemplo, inventou o windsurfe. Mas há mais de 50 anos, os cearenses faziam a mesma coisa nas jangadas deles… Só que não tinha o charme.
Essa capacidade que o Rio tem de fazer as coisas acontecerem vem do fato de a cidade ter sido capital, não apenas da República, mas também do Império?
MF - Sim, mas tem essa coisa extraordinária de ser uma cidade industrial à beira-mar, né? No verão, o cara vai pra praia na hora do almoço, dá um mergulho e volta pra trabalhar. Há muitos anos esteve no meu apartamento da Vieira Souto um repórter da revista Look para me entrevistar. Ele almoçou comigo, olhou a praia, e ele estava certo de que aquilo era uma casa de campo que eu tinha. “Ninguém pode morar assim…”, ele disse [risos].
Mas a especulação imobiliária e a violência não acabaram um pouco com essa aura de “cidade maravilhosa”?
MF - A especulação imobiliária é um dos cânceres do
mundo. Não foi só aqui que f(*). No século 20, a especulação norte-americana
inventou o arranha-céu, logo imitado até por Catulé da Sapucaia. Mas, justiça
seja feita, até meados do século passado, Nova York era o único lugar em que a
coisa tinha dado certo. Depois, nem lá. Hoje, aquele país de meio metro
quadrado, Taiwan ou Formosa, sei lá, que se acha a capital da China, construiu
o maior arranha-céu do mundo, com 500 andares.
Millôr, dá pra viver de humor no Brasil?
MF - Eu não sei, porque, veja bem, eu nunca fiz só
humor. Os meus pais morreram cedo. Nós éramos classe média, tínhamos uma casa
no Méier, de dois andares, quatro quartos. Bem, ele morreu com 36 anos, minha
mãe tinha 27, quatro filhos, nenhuma experiência, e aí alugou metade da casa
para uma irmã e ela começou a costurar pra fora. O que significa que nós
descemos pro proletariado. Quando ela morreu, nós viramos lúmpen. Então eu
comecei a trabalhar com 14 anos e alguns dias eu não tinha dinheiro pra comer,
literalmente.
Você já trabalhava na revista O Cruzeiro?
Você já trabalhava na revista O Cruzeiro?
MF - Sim, já era n’O Cruzeiro! E eu fazia tudo e
ganhava 100 réis numa época de moeda estável. Teve um momento que eu estava tão
desesperado que cheguei na empresa e pedi um aumento pra 300. Era um menino
maluco, né? A revista vendia 10 mil exemplares e tinha três mesas, a minha, a
do diretor e a dos desenhistas. Mas, pra encurtar a história, quando eu estava
com 20 anos, eu ganhava o maior salário da empresa, que era 12.500 réis e já
morava na avenida Atlântica com meu amigo Freddy Chateaubriand, sobrinho do
monstro Chatô. E comprei até automóvel, coisa que ninguém tinha. Naquela época,
todo automóvel era estrangeiro. O Brasil não fabricava nem geladeira. Mas eu
não fazia só humor, fazia isso e tudo o mais, né? E também já tinha começado a
traduzir. Me perguntam onde é que eu aprendi inglês. Eu nunca aprendi, mas eu
tinha que ganhar a vida [risos].
Então o humor não paga bem mesmo...
MF - Mas o que seria o humorista? Seria o comediante?
O comediante ganha muito dinheiro. Faz fortuna. Mas eu tenho a impressão que
hoje o Angeli, que é um profissional da melhor qualidade, faz por merecer.
Então, é como em toda profissão, tem uns que chegam a ministro do Exterior e
tem os que chegam a ministros de primeira classe.
O humor, enquanto gênero literário, precisa de
tempo pra ser respeitado? Dom Quixote, por exemplo, precisou de anos pra ser
respeitado como uma grande obra… Ou não foi bem assim?
MF - Olha aqui, Dom Quixote fez sucesso mais ou menos
imediato. Veja, o maior etimólogo que eu conheço chamava-se Eric Bassetti. Ele diz
uma coisa interessante. No inglês britânico, burro se chama donkey. O dom
Quixote o que é? Um débil mental, idiota. Então os caras começaram a chamar o
burro, o idiota, de donkey, que é uma contração de dom Quixote. Eu traduzi uma
peça extraordinária [Celestina,do espanhol Fernando de Rojas], escrita em 1499.
Ela já vem com um elogio a Cervantes, o que prova que ele já era bem respeitado
na época. Agora, o que é ser reconhecido ou não reconhecido? Eu não sei o quê
que é. Eu posso reclamar de tudo e posso não reclamar de nada. Tem pessoas que
dão um valor ao meu trabalho muito acima do que eu suponho ter e tem gente que
acha que eu sou um idiota. Mas de um modo geral, o que eu faço é apreciado na
hora. Sendo que, hoje, como ontem, sempre há pessoas que chegam perto de mim e
dizem: “Eu gosto muito do seu trabalho, mas muita coisa eu não entendo”. Se
entenderem tudo é porque eu tô ficando muito fácil [risos].
Você continua achando que o melhor movimento feminino ainda é dos quadris?
MF - As mulheres conquistaram coisas formidáveis. Mas algumas não são boas. Inúmeras mulheres começaram a imitar o pior dos homens. Agora, várias conquistas são perfeitas. As conquistas no trabalho, por exemplo… Algumas são até tecnológicas, não são delas. Como a pílula anticoncepcional que possibilitou a emancipação sexual, que não é só das mulheres, uma vez que os homens também eram vítimas desse negócio.
Você continua achando que o melhor movimento feminino ainda é dos quadris?
MF - As mulheres conquistaram coisas formidáveis. Mas algumas não são boas. Inúmeras mulheres começaram a imitar o pior dos homens. Agora, várias conquistas são perfeitas. As conquistas no trabalho, por exemplo… Algumas são até tecnológicas, não são delas. Como a pílula anticoncepcional que possibilitou a emancipação sexual, que não é só das mulheres, uma vez que os homens também eram vítimas desse negócio.
Ninguém dava, né?
MF - Dava. Claro que dava. Dava escondido, mas dava! O
cara que não sabia pedir é que não conseguia nada. Mas hoje as mulheres usam
até expressões que não são delas. Dizem “Não enche meu saco”, quando deveriam
dizer “Não enche meu útero”, não é verdade? [Risos.] É claro que a mulher não
vai ganhar uma corrida de homem, não tem jeito. E na inteligência abstrata, por
exemplo, é tudo homem. Outro dia estava lendo um livro de ciências tecnológicas
e é impressionante. Tudo homem. Essa minha frase foi deturpada pra burro.
Trocam “feminino” por “feminista” e aí f(*) tudo. Eu estou falando é daquela
que dorme menina e acorda mulher. É uma dádiva de Deus, da natureza… Qualquer
feminista trocaria tudo para ser aquela mulher por meia hora.
Se todas as mulheres fossem bonitas e jovens, não existiria o feminismo, é isso?
MF - Olha aqui, não há motivo algum que impeça as
mulheres de assumirem postos de comando no mundo todo. Agora, tem uma coisa que
elas não conseguirão jamais: serem mais calhordas que os homens. [Risos.] Você
acha que a sua mulher vai ser mais calhorda que Jarbas, que Sarney? Não tem
jeito. A filha tentou e não conseguiu [gargalhadas].
Já que você entrou por aí, o homem não anda muito fresco?
MF - Mas não tenha dúvida! Tá cedendo muito! Tá
cedendo muito porque o homem tem uma fraqueza fundamental, né? A impotência
está com o homem.
Mas agora tem o Viagra!
Mas agora tem o Viagra!
MF - Olha, eu não sei… Porque é uma coisa artificial,
entendeu? E tem muita gente de 20 anos, de 30 e de 40, que não precisava tomar
esse remédio de jeito nenhum, e que toma. Isso deve causar algum efeito
psicológico.
Você nunca tomou?
MF - Não, não! Eu tenho horror a remédio! Eu tenho
horror até de aspirina. Se eu precisar de estimulante, eu vou me estimular com
a literatura [risos]. Mas os homens estão muito intimidados, né? E no Brasil
não é nada, não. Nos Estados Unidos acabou a relação homem-mulher. A mulher
pode usar minissaia, mas você não pode olhar porque senão você a estuprou, né?
Eles usam “estupro” pra qualquer coisa. E o estupro pra mim só vale quando há
algum tipo de violência, seja física ou de poder – por exemplo, quando o chefe
da repartição começa a dar em cima da mocinha e usa o poder para conseguir o
que quer. Agora, de repente o cara é acusado de seduzir uma mulher. Como assim?
Eu pergunto: quem é que tem mais poder de fogo, uma moça de 18 anos ou um homem
de 40? Quem é que seduz mais?
Está respondido…
MF - Nós tivemos um período de submissão quase
escravocrata da mulher que gera, agora, esse período de turbulência. Tudo isso
é ocasional. A gente não pode mudar com a história enquanto ela está se
fazendo. As mulheres conquistaram uma série de coisas, são delas mesmo e não
tem jeito mais. Você não vai proibir as mulheres de se desnudarem, você
entende? Não existe isso.
Claro que não, muito pelo contrário…
Claro que não, muito pelo contrário…
MF - Não, não, pelo contrário não! Eu acho que uma
certa pruderie até valoriza a mulher. Quando você vê uma mulher que se cuida
mais um pouco, você se interessa mais. Olha, já era pro homem não ter mais
nenhum interesse em mulher, né? Outro dia estava vendo uma comédia ligeira na
televisão sobre um cara que se finge de gay num navio e um monte de gostosas
quer levá-lo pra cama. E de repente uma delas pega uma banana, descasca e
começa a chupar. E isso numa comédia que é pra garotada. Diante disso, o que
tem mais a fazer? Mais nada. Essa chupação na televisão… Não tem motivo, não
tem nenhum espírito por trás, você entende? É uma porcariada só.
Mas essa não é uma posição muito conservadora pra um cara que passa boa parte do tempo vendo mulher pelada na praia?
MF - Olha aqui, eu sempre fui conservador. Nem tanto pela mulher pelada, mas pela mulher tentadoramente despida. Em Ipanema elas sabem como fazer.
Você acompanha a produção de humor que acontece hoje na internet, por exemplo?
MF - Não, não acompanho nada. Se estiver na minha frente, eu vejo, mas não acompanho. Agora mesmo eu estava lendo um livro que tem um ensaio sensacional sobre o humor, que eu pensava que era do Ortega y Gasset, mas era do Ramon Gomes de Lacerda. Então eu leio assim, ocasionalmente, entendeu? De repente, pego um livro que tá aí há 20 anos e leio. Agora, na internet não tem tanta coisa boa quanto a gente pensava que teria. Na verdade, eu acho que é a mesma proporção de antigamente. Do que chegava até você, só 10% tinha possibilidade de ser publicado. Hoje, todo mundo que tem talento ou alguma pretensão tem acesso a algum outro meio de divulgação além do blog. E, paradoxalmente, você pode até achar que o cara que tá fazendo um blog medíocre vai ter mais público do que outro que seja melhor. Existe o Paulo Coelho também na internet. [Risos.]
Você não acha que no Brasil o cartum perdeu muito espaço para a charge?
MF - Perdeu… aí sim. Pois é mais fácil para o sujeito que não tem experiência, ou que não tem humor mais afinado, cair em cima do acontecimento. E a charge sobre política passa a ser o máximo e você terá sempre seus adeptos. É mais ou menos como quando você fala do Flamengo. Sempre haverá quem goste do Flamengo. Ainda que você não seja lá muito criativo, sempre haverá gente em torno de você. Outro dia, fiz um desenhozinho na Veja – o que procuro variar, entende? – e, curiosamente, achei que ninguém iria entender. Mas recebi quatro ou cinco e-mails, o que é muito. Era um negócio assim: “Eu escrevi um livro, plantei uma árvore e criei um filho. Hoje, meu filho, embaixo da árvore, queima o livro” [risos].
Você uma vez disse que era mais um humorista de texto do que de traço. Continua achando isso?
MF - Eu disse isso? Eu não sei não. Mesmo porque eu chamo o humorismo de quintessência da seriedade. Mas não é só pra fazer uma frase, não. No momento em que você raciocina sobre tudo, você consegue resumir aquela coisa toda que os caras pomposamente disseram. Então você é humorista porque você modificou aquilo, resumiu aquilo, destruiu aquilo. E você, no ato de modificar, também sabe que a sua opinião não é definitiva. Você tem sempre essa ressalva de autocrítica, você entende? Isso é humor. Porque um cara que é doutor, que escreve no jornal e põe embaixo “filósofo”, esse é um idiota que eu não quero nem cumprimentar. Como é que o cara põe embaixo “filósofo”? Você é filósofo como? Pra mim, humorismo é isso. Eu começo a rabiscar, dali a pouco naturalmente me vem uma legenda que eu ponho naquele desenho. Agora, eu não sei escrever como doutor. Você está sempre disfarçando o ato de ser um doutor, pois não quer que ninguém perceba [risos].
As pessoas estão mais interessadas em humor, Millôr? De uns tempos pra cá, relançaram o Pif Paf, a antologia d’O Pasquim, o Gip! Gip! Nheco! Nheco!, do Ivan Lessa, seus livros estão sendo todos reeditados. O que é que está acontecendo? Será que o público está carente de novas publicações de humor?
MF - Não, não… O humor sempre terá uma excelente
aceitação. Desde a Grécia é assim, você tinha a tragédia e tinha o humor, né?
Agora, o que acontece é o seguinte, a Marta Batalha [dona da Desiderata, atual
editora da antologia d’ O Pasquim e dos livros do Millôr] conseguiu impor ao
mercado as publicações dela. O Jaguar e o Sérgio Augusto fizeram um bom
trabalho de edição [na antologia d’ O Pasquim] e teve um grande sucesso. E aí
ela me procurou para editar os meus livros. Na verdade, com o instinto dela,
ela teve a noção de que o mercado quer isso, mas, na verdade, quem está impondo
é ela. O Pasquim seria imposto omo humor ou como fama? O Pasquim é um nome… e
sempre será. Agora, no século 15 e 16, quem são os maiores escritores da época?
Shakespeare. Cheio de trocadilhos… porque se acabar o trocadilho, acaba
Shakespeare. E quem é o outro? Cervantes. Na Inglaterra ainda tem o Doutor
Johnson, que era engraçado. E As Viagens de Tristran Shandy, do Laurence Sterne,
que o Machado de Assis copiava bastante. Quem é, talvez, o maior escritor da
França do século 18? Molière. Tinha outros, como Racine. Mas o maior era
Molière. Agora, O Pasquim funcionava porque, embora não se levasse a sério,
ninguém ali queria ser engraçadinho. Queria ser iconoclasta. Por exemplo, a
Benedita da Silva se lança candidata ao governo como “mulher, preta e
favelada”. A gente diria assim: “Três bons motivos pra não votar nela”
[gargalhadas]. Eles vêm com a demagogia e você vai em cima, né? Esse negócio de
preto, por exemplo. Se criou com uma mística do preto que é um negócio
terrível. Agora eu tenho de chamar o meu amigo Antônio Pitanga de
afro-ipanemense. O slogan “black is beautiful” é um belo slogan, mas você não
pode chamar ninguém de “black”. Agora, a cor mais bonita do Brasil é a da
Camila Pitanga.
Além dela, quem mais entra na sua lista de “certinhas”?
MF - Não entro nessa de “certinhas”. O corpo é apenas um estágio para o espírito. Estou interessado é em comer a alma da mulher. Só o idiota pensa que o sexo é um ato físico.
Você sente falta de um novo jornal como O Pasquim?
MF - Vou fazer uma frase, mas que não é só uma frase, não: “Você não pode prever o imprevisível”. Porque o PT, essa coisa… essa escrotidão que é o PT por dentro… Achava que a vontade deles era combater a burguesia, mas a vontade era de ter uma fazenda, de ter um dinheirinho… Você pega, por exemplo, aquela favela ali. [Aponta para a janela de onde se vê um pedaço da Rocinha.] Assim que começa a favela, já tem um explorador ali. Agora, o que vai surgir dali, você não sabe. Não tem jeito de erradicar, apenas civilizar, urbanizar. A Rocinha, eu tô convencido, vai ser uma das mais bonitas cidades do mundo em 50 anos. Cidade é assim. Cidade tem beco sem saída, tem escada que não dá em nada…
A não ser que seja projetada pelo Niemeyer, né?
MF - Não, aí não. Aí não tem beco nenhum. Você não pode
projetar um beco sem saída [risos]. E nem serventia. Você sabe o que é
serventia?
Não. O que é serventia?
Não. O que é serventia?
MF - Serventia é o seguinte: você vende um terreno e
depois um outro atrás do primeiro, que não tem entrada. Então o da frente deixa
ali meio metro de passagem, que é a serventia. E às vezes, a serventia é uma
escada, toda adornada com pedaços de azulejos. Agora, de repente, tem um lugar
que não dá pra fazer nada. Então eles cimentam e colocam um banco pra você se
sentar. Fica uma escada de três degraus e um banco. Você não pode fazer isso
num plano de arquiteto.
Arquitetura produz corrupção? Os prédios de
Brasília, feitos para abrigar burocratas, não acabam influenciando mal os
políticos?
MF - Claro, a corrupção endêmica começou ali. Não se faz uma cidade no meio do deserto em menos de cinco anos com as mãos, os pés e o corpo limpos. Agora, a corrupção é mais natural no ser humano do que a integridade.
Você estava falando um pouco da sua rotina de trabalho. Eu queria entrar um pouco mais na carpintaria. Você planeja sua página na Veja com antecedência? Como é o seu processo de criação? [Rindo.]
MF - Claro, a corrupção endêmica começou ali. Não se faz uma cidade no meio do deserto em menos de cinco anos com as mãos, os pés e o corpo limpos. Agora, a corrupção é mais natural no ser humano do que a integridade.
Você estava falando um pouco da sua rotina de trabalho. Eu queria entrar um pouco mais na carpintaria. Você planeja sua página na Veja com antecedência? Como é o seu processo de criação? [Rindo.]
MF - Eu não posso nem te dizer por que não há. Quando
eu digo “livre como um táxi”, é isso mesmo. Não dá pra parar e dizer: “Agora
vou escrever isso”. Eu tenho mil coisas rabiscadas. Às vezes, começo a remexer
nisso. Outras vezes, você já sabe de antemão qual vai ser o assunto da semana.
Agora, o que eu faço muito, sempre fiz, é me cansar antes do leitor. Por
exemplo, eu fiz mais hai-kais do que o Bashô [poeta japonês considerado o pai
do hai-kai]. Depois achei que estava enchendo. É como as fábulas… também parei.
São 52 semanas por ano, então é a continuidade do trabalho que dá qualidade a
ele. Se eu faço uma página com muito texto, a próxima vai ter um desenho só. Eu
quero surpreender. As pessoas pensam que eu vou arregar, mas não tem arrego,
não [risos].
Você nunca fez histórias em quadrinhos. Eu me lembro apenas de uma parceria sua com o Carlos Estevão, mas nada mais. Por quê?
MF - Não aconteceu. É ocasionalidade. Eu não sou homossexual não sei por quê. Porque não aconteceu [gargalhadas]. Não publica isso senão muita gente vai dizer: “É… confessou!” [risos]. Essa história com o Carlos Estevão eu disse pro Diário da Noite e depois o Fortuna publicou na revista O Bicho. O Fortuna, aliás, tinha um desenho e um texto extraordinários. Agora, não podia publicar em revista semanal… Levava 15 dias para escrever dez linhas. Quando acabava, era perfeito, mas levava 15 dias. Mas uma outra história em quadrinhos que eu gosto muito é uma que fiz n’O Pasquim, chamada “O Último Baião em Caruaru”, imitando o Último Tango em Paris. É uma maluquice. O cara fala o texto em italiano e tem legenda em inglês exatamente ao contrário. Ninguém jamais entendeu aquilo, mas eu gosto muito.
Você nunca fez histórias em quadrinhos. Eu me lembro apenas de uma parceria sua com o Carlos Estevão, mas nada mais. Por quê?
MF - Não aconteceu. É ocasionalidade. Eu não sou homossexual não sei por quê. Porque não aconteceu [gargalhadas]. Não publica isso senão muita gente vai dizer: “É… confessou!” [risos]. Essa história com o Carlos Estevão eu disse pro Diário da Noite e depois o Fortuna publicou na revista O Bicho. O Fortuna, aliás, tinha um desenho e um texto extraordinários. Agora, não podia publicar em revista semanal… Levava 15 dias para escrever dez linhas. Quando acabava, era perfeito, mas levava 15 dias. Mas uma outra história em quadrinhos que eu gosto muito é uma que fiz n’O Pasquim, chamada “O Último Baião em Caruaru”, imitando o Último Tango em Paris. É uma maluquice. O cara fala o texto em italiano e tem legenda em inglês exatamente ao contrário. Ninguém jamais entendeu aquilo, mas eu gosto muito.
O seu amigo Ivan Lessa fala que brasileiro tem
fôlego curto, que nosso negócio é crônica, conto, mas não o épico, o romance.
Você concorda com ele?
MF - Eu sou contra a generalização. Quem é esse brasileiro? É como dizer: “A mulher brasileira é a mais bonita do mundo”. É nada. Tem mulher de todo tipo aqui. Tem meia dúzia muito bonita em Ipanema, mas não dá pra generalizar. Hoje eu estava vendo uma partida de vôlei feminino com um time do Azerbaijão. Todas loiras, altas, com a roupinha apertando na bundinha, todas penteadinhas… lindas. As mulheres russas são belíssimas, não é? Tá cinco graus abaixo de zero e elas usam minissaia. Então, não dá pra generalizar. E o Euclides da Cunha? E o João Ubaldo? E a minha amiga, Ana Maria Gonçalves, que acabou de escrever Um Defeito de Cor? Um livro sensacional. Em suma, eu não concordo com o Ivan. Eu não concordo, em geral, com a generalização. Tem uma expressão que diz que o humor é tragédia + tempo. Quanto tempo leva pra uma tragédia virar comédia? Por exemplo, quanto tempo precisa para que o 11 de Setembro vire uma piada? O 11 de Setembro? Não, não vira, não. O tempo suaviza, vira memória, mas piada não vira, não. No mundo árabe, talvez vire piada.
Então alguns temas serão sempre tabus pro humor?
MF - Eu sou contra a generalização. Quem é esse brasileiro? É como dizer: “A mulher brasileira é a mais bonita do mundo”. É nada. Tem mulher de todo tipo aqui. Tem meia dúzia muito bonita em Ipanema, mas não dá pra generalizar. Hoje eu estava vendo uma partida de vôlei feminino com um time do Azerbaijão. Todas loiras, altas, com a roupinha apertando na bundinha, todas penteadinhas… lindas. As mulheres russas são belíssimas, não é? Tá cinco graus abaixo de zero e elas usam minissaia. Então, não dá pra generalizar. E o Euclides da Cunha? E o João Ubaldo? E a minha amiga, Ana Maria Gonçalves, que acabou de escrever Um Defeito de Cor? Um livro sensacional. Em suma, eu não concordo com o Ivan. Eu não concordo, em geral, com a generalização. Tem uma expressão que diz que o humor é tragédia + tempo. Quanto tempo leva pra uma tragédia virar comédia? Por exemplo, quanto tempo precisa para que o 11 de Setembro vire uma piada? O 11 de Setembro? Não, não vira, não. O tempo suaviza, vira memória, mas piada não vira, não. No mundo árabe, talvez vire piada.
Então alguns temas serão sempre tabus pro humor?
MF - São! Em princípio são tabus. Mas isso também não
impede que você tenha a contestação desses temas, que pode levar ao humor. Você
pega o Holocausto, por exemplo. Outro dia, vi um negócio absolutamente absurdo:
um historiador na Áustria escreveu um artigo criticando o uso que os judeus
fazem do Holocausto. E lá tem uma lei constitucional que condena o sujeito a
dez anos por criticar os judeus vítimas do Holocausto. Olha a monstruosidade…
Agora, não foram só os judeus que foram perseguidos, né? Os ciganos foram
perseguidos, os gays foram perseguidos… A União Soviética liquidou polacos por
serem polacos, alemães por serem alemães. E a Armênia? Ninguém nunca falou.
Agora, a Turquia, para entrar na Comunidade Européia, vai ter que confessar o
genocídio. Em 1930, eles mataram 1,5 milhão de armênios numa população de 3
milhões.
Então existem temas que você não entra…
Então existem temas que você não entra…
MF - Existem! Deve haver algum tabu em mim mesmo que
eu nem saiba. Evidentemente, eu não me sinto bem fazendo piada anti-judaica,
você entende? Como também não vou fazer piada anti-negro. A gente pode fazer
uma gozação periférica. Agora é difícil dizer até onde é piada e até onde não
é.
Pois é, qual é o limite?
Pois é, qual é o limite?
MF - Não tem, não tem limite. Se você pegar qualquer
coisa que eu tenha escrito há muito tempo e fragmentá-la, você poderá me ver
como um canalha ou o maior herói de todos os tempos. A audácia que tive fazendo
isso ou aquilo… Você vai vivendo e fazendo. Olha aqui, está vendo aquela placa
de madeira ali em cima? [Millôr aponta um diploma em inglês que o certifica
como consultor da IBM.] Eu sou o maior vigarista do mundo, pois sou conselheiro
da IBM para o negócio de publicações. Eu fui uma vez lá em Miami, uma sala
cheia de japoneses, e eles estavam fazendo um laptop e queriam conselhos sobre
como fazer. E também sou vice-campeão mundial da pesca de atum. Isso você sabe,
né?
Não, essa eu não sabia…
Não, essa eu não sabia…
MF - Pois é. E onde foi? Não foi na esquina, não. Foi
no maior pesqueiro do mundo, na Nova Escócia, Canadá. Três dias de pesca das
quatro da manhã até o sol cair, com 32 países competindo. E eu sou
vice-campeão. Agora, nunca vi um peixe, não. Porque o atum chega a 400 quilos.
É um boi. E, neste ano, só apareceu um único peixe de 40 quilos. Uma sardinha
em matéria de atum. Então, de brincadeira, fizeram plaquinhas de latão e deram
para todos os competidores. Ou seja, vigarice é comigo. Agora, o frescobol não
é vigarice, não. Nós começamos a jogar na praia de Copacabana e aí foi pegando.
O frescobol é melhor até do que o lema do barão de Coupertin, que diz que o
importante não é vencer, é competir. No frescobol, o importante nem é competir.
Não conta ponto.
Nos anos 70 você escreveu que tinha batido o recorde de cinco mil mulheres. Como esta é uma entrevista para a PLAYBOY, não posso deixar de perguntar: a conta melhorou de lá pra cá?
Nos anos 70 você escreveu que tinha batido o recorde de cinco mil mulheres. Como esta é uma entrevista para a PLAYBOY, não posso deixar de perguntar: a conta melhorou de lá pra cá?
MF - Não, isso não! Está deturpado. Mil mulheres só se
eu fosse o Daniel Filho [diretor de TV]. Eu disse cinco “mil” gols, porque o
Pelé estava completando mil gols. Não são necessariamente mil partidas,
entende? Dos 18 aos 38 anos, dar mil não custa nada. Três por semana não é nada
demais. Mas o importante é a assiduidade, né?
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