MLUIZA |
"Amigos, eis uma verdade eterna:
o passado sempre tem razão "
(Nelson Rodrigues)
A transferência da sede do município para Ipaumirim aconteceu em 1953, a primeira
eleição em 1954. Eu nasci em 1951. Digamos que somos da mesma geração.
Presenciei a "independência" de IP embora nem soubesse o que era
isso. Crescemos juntos. Ainda lembro-me de muita gente, são os do tempo do meu
avô. Adolfo que sabia minha preferência por bico de pão. Zé Macedo, patrão do
meu pai, a quem eu chamava “outro vovô”. Dudu, mãe de Zenira, Maria Luna,
Cícero Bento, Chico Olívio e sua imaginação fértil, Dr. Arruda e o seu séquito,
Cícero Fernandes passando todas as manhãs para o escritório, Epitácio Nóbrega,
Joaquim Pires, Zé Felinto, Seu Ernani, Mestre Joaquim, Argemiro Vieira, Bonifácio Vieira, Seu
Joca, Compadre Cil (Cirilo Sampaio), Iaiá Crispim, Dona Piquili, Zé de Melo,
João de Melo que me trazia deliciosas goiabas, Chico de Melo, Alexandre
Gonçalves, Sebasto Barbosa, Zé Saraiva, Odilon Neri comandando as quadrilhas de
São João, Maria Lourenço cuidando da igreja, Manuel Gomes, Chico Germano, Manu
Alexandre. Falta falar em tanta gente que morava na rua do sol, na rua da
sombra, na rua do colégio, na rua da matança, na rua do posto, nos sítios. Dona
Júlia que plantava coentro e morava na rua atrás da casa de meu avô. Vicentina
naquela luta tocando a vida. Bilina na sua busca frenética por Pedro, sua
grande e única fantasia amorosa, Manuel Fon Fon, Antonio Baraúna, Miceno Dias,
Neném Moquim, Manuel Sapateiro, Donato Crispim, Seu Neném, pai de Nilda Pessoa,
Expedito Dantas, Senhor Damião fiel ouvinte do programa A voz do Brasil, D.
Vicência Cassiano, Castro Alves, Neco Jacinto, Zé Alves, Raimundo Victor. Uma
vez fui no jipe da paróquia com Padre Holanda e seu sacristão (chamava-se
Baldomero?) no sítio de Raimundo Victor (Vitô se pronunciava) para dar extrema
unção a um enfermo. Cícero Victor com seu inseparável chapéu, Alberto Moura,
Nildo Fernandes, Manassés, Zomeiro, Luiz Trajano, Francisquinha Serafim fazendo
flores e frutinhas de massa de trigo, Luíidio Barbosa com suas múltiplas
profissões, Seu Sales, Maria Antonia, Antonio Oliveira, Dedé Lustosa, Severino
Dudu, Antonio Vermelho, Cirilo Serra, Ademar Barbosa, Alceu, Manuel sapateiro
etc. etc. etc. porque a lista vai ficar longa demais e ainda assim esquecerei
alguém.
Eu conhecia os quatro costados de Ip. Da Pedra de São Sebastião à aguada na saída Baixio. Do serrote à Vila São José. Da cadeia à rua da matança, eu sabia quem era cada um.
Uma vida tão simples e precária. Água de pote, fogão de lenha, canecos de alumínio, candeeiro e farol a querosene alumiando as casas. Pau de arara levando a nossa gente - como animais – apinhada em cima de velhos caminhões, frentes de trabalho miseráveis, caixões azuis carregando anjinhos, gente morrendo por qualquer coisa. Quem viu não esquece jamais.
Na volta do comércio, as lojas de tecido de Zé Macedo, depois de papai, Senhor Damião, Vitorino e tenho a impressão que Zé Josué ou Zé Batista tinha outra loja. A bodega de Cícero Soares, a de tia Cristina. O café de Nem Olímpio, o de Chiquinha de João Leandro, o de Maria Ribeiro, o de Bernardina, o de Rosária e o de Dona Otília eram os restaurantes da cidade. Vizinho ficava a fábrica de colchões de palha do maleiro, pai de Ireuda de João Mago. Ireuda e sua mania por radiolas. Dentro do mercado, lembro bem da banca de Mirô e de uma onça pintada na parede perto de uma venda de caldo de cana. Acho que o dono chamava-se Raimundo Paulo. No beco do velho Custódio rolava a jogatina. A difusora tocava Nelson Gonçalves, Ângela Maria. Cinema era só na parede de fora da igreja quando havia missões.
Neném Sobreira, Adautiva, Do Céu Batista e Mundinha de Zacarias, cuidavam da elegância feminina costurando trabalhosos vestidos em linho, organdi, crepe, cambraia bordada, bicos, nervuras e babados. Anáguas espetadas. Dona Odete era a melhor passadeira. Alaíde de Jiló, a manicure da cidade. Zacarias Pontes, o fotógrafo. As fotos mais sofisticadas eram tomadas no estúdio do Foto Nogueira, em Cajazeiras.
O grande evento social do ano era a solene festa de colação de grau do 5° ano primário do Grupo Escolar D. Francisco de Assis Pires.
Com a inauguração do Clube Recreativo de Ipaumirim chegam os grandes carnavais.
A CNEC traz o Colégio XI de Agosto. Os desfiles de sete de setembro acirravam a disputa entre o antigo grupo e o novo colégio. Quem apresentaria o melhor e mais bonito desfile?
A colação de grau agora era do ginásio. Foi a era dos brocados, cetim de seda pura, bordados de miçangas, lantejoulas e paetês. Os tubinhos desenhavam o corpo das mulheres. As primeiras sombras, em bastão, entram no kit de maquiagem. Algumas tinham consistência parecida com pasta de dentes. Os cheiros fortes dos perfumes da Avon predominavam. O laquê que garantia o penteado tinha o insuportável cheiro de breu. Nada tirava o brilho da festa, nem os sapatos bico fino apertando os dedos da mulherada. Tudo embalado ao som do iê-iê-iê.
Foram chegando a energia de Paulo Afonso e o telefone. Não sei qual chegou primeiro. A nossa primeira central tinha poucas linhas e logo ficou obsoleta. Chegaram os primeiros telefones da Teleceará. Foram instalados em duas cabines numa salinha do prédio onde fica o CVT. O calor infernal, a péssima qualidade do serviço e a quantidade de gente na fila para telefonar eram um massacre. Discrição zero. Ir à noite para a telefônica era praticamente atualizar a agenda da vida alheia.
A televisão veio por estes tempos, só chuviscava. Na época da ditadura, a construção das rodovias federais facilitou o deslocamento e o transporte de mercadorias e pessoas. Infelizmente, IP ficou fora das rodovias e isolado desse contexto mas ainda assim as coisas ficaram mais fáceis.
Com a chegada do Banco do Brasil, a cidade se sentiu no primeiro mundo. Tudo era para o BB. O melhor corte de carne, as melhores frutas entre as pouquíssimas opções existentes. Ser bancário era simplesmente o máximo e, ainda mais, do BB. Grandes partidos, gente de primeira classe. Essa fantasia durou até a agencia ser fechada.
Anos depois, chega a internet que traz uma perspectiva revolucionária na capacidade de transmitir informações e ampliar horizontes.
Ao longo dos anos, vão acontecendo reconfigurações políticas, econômicas e sociais que desenharam novos hábitos e comportamentos promovendo novas tramas e contextos híbridos pela convivência entre a força das tradições e o fascínio pelo novo.
Quem viveu as dificuldades dos anos 50 e 60 e a luta para atravessar períodos tão difíceis não deixa de se perguntar onde se perderam os compromissos pela conservação das duras conquistas? Poucas mas significativas. Pelo menos, foram as que tivemos Por que as lideranças e a própria comunidade se deixou arrastar pelas pequenas facilidades e esqueceu o dever fundamental de cuidar de si mesma? Por que tanto descaso com o bem público? E a nossa dignidade, em que esquina foi abandonada? Quando começamos a nos enredar no submundo da política a ponto de tratar as nossas lideranças como mercadores e os nossos brios como produtos em liquidação? Hanna Arendt diz que tudo fica mais complicado quando “os bons perdem as esperanças e os maus perdem o temor.”
Podemos até argumentar que a cidade está crescendo mas são todas construções privadas. Onde estão as obras públicas que há muito tempo não mostram sua cara? Fruto das bolsas tal e qual, tão duramente criticadas, da renda das aposentadorias e das compras a crédito, a cidade cresce mas não aparece. O que faz aparecer é qualidade de vida das pessoas, educação bem estruturada, serviço de saúde bem instalado, prestação de contas transparente, respeito pelo cidadão, cuidado com o meio ambiente. Quando tivemos isso em IP? Nos velhos tempos, a luta era para conquistar a sobrevivência. E, hoje, quais são os objetivos, as metas, as lutas?
Os tempos mudaram e nós acabamos ficando com o pior da tradição e não conseguimos desfrutar do melhor que o mundo moderno nos deu que é a consciência da cidadania. Adotamos, por conveniência, o lixo da sociedade de consumo: o individualismo, a esperteza e a indiferença.
Pão e circo no dia do município. De alguns tempos para cá, é o que sobra para todos.
Eu conhecia os quatro costados de Ip. Da Pedra de São Sebastião à aguada na saída Baixio. Do serrote à Vila São José. Da cadeia à rua da matança, eu sabia quem era cada um.
Uma vida tão simples e precária. Água de pote, fogão de lenha, canecos de alumínio, candeeiro e farol a querosene alumiando as casas. Pau de arara levando a nossa gente - como animais – apinhada em cima de velhos caminhões, frentes de trabalho miseráveis, caixões azuis carregando anjinhos, gente morrendo por qualquer coisa. Quem viu não esquece jamais.
Na volta do comércio, as lojas de tecido de Zé Macedo, depois de papai, Senhor Damião, Vitorino e tenho a impressão que Zé Josué ou Zé Batista tinha outra loja. A bodega de Cícero Soares, a de tia Cristina. O café de Nem Olímpio, o de Chiquinha de João Leandro, o de Maria Ribeiro, o de Bernardina, o de Rosária e o de Dona Otília eram os restaurantes da cidade. Vizinho ficava a fábrica de colchões de palha do maleiro, pai de Ireuda de João Mago. Ireuda e sua mania por radiolas. Dentro do mercado, lembro bem da banca de Mirô e de uma onça pintada na parede perto de uma venda de caldo de cana. Acho que o dono chamava-se Raimundo Paulo. No beco do velho Custódio rolava a jogatina. A difusora tocava Nelson Gonçalves, Ângela Maria. Cinema era só na parede de fora da igreja quando havia missões.
Neném Sobreira, Adautiva, Do Céu Batista e Mundinha de Zacarias, cuidavam da elegância feminina costurando trabalhosos vestidos em linho, organdi, crepe, cambraia bordada, bicos, nervuras e babados. Anáguas espetadas. Dona Odete era a melhor passadeira. Alaíde de Jiló, a manicure da cidade. Zacarias Pontes, o fotógrafo. As fotos mais sofisticadas eram tomadas no estúdio do Foto Nogueira, em Cajazeiras.
O grande evento social do ano era a solene festa de colação de grau do 5° ano primário do Grupo Escolar D. Francisco de Assis Pires.
Com a inauguração do Clube Recreativo de Ipaumirim chegam os grandes carnavais.
A CNEC traz o Colégio XI de Agosto. Os desfiles de sete de setembro acirravam a disputa entre o antigo grupo e o novo colégio. Quem apresentaria o melhor e mais bonito desfile?
A colação de grau agora era do ginásio. Foi a era dos brocados, cetim de seda pura, bordados de miçangas, lantejoulas e paetês. Os tubinhos desenhavam o corpo das mulheres. As primeiras sombras, em bastão, entram no kit de maquiagem. Algumas tinham consistência parecida com pasta de dentes. Os cheiros fortes dos perfumes da Avon predominavam. O laquê que garantia o penteado tinha o insuportável cheiro de breu. Nada tirava o brilho da festa, nem os sapatos bico fino apertando os dedos da mulherada. Tudo embalado ao som do iê-iê-iê.
Foram chegando a energia de Paulo Afonso e o telefone. Não sei qual chegou primeiro. A nossa primeira central tinha poucas linhas e logo ficou obsoleta. Chegaram os primeiros telefones da Teleceará. Foram instalados em duas cabines numa salinha do prédio onde fica o CVT. O calor infernal, a péssima qualidade do serviço e a quantidade de gente na fila para telefonar eram um massacre. Discrição zero. Ir à noite para a telefônica era praticamente atualizar a agenda da vida alheia.
A televisão veio por estes tempos, só chuviscava. Na época da ditadura, a construção das rodovias federais facilitou o deslocamento e o transporte de mercadorias e pessoas. Infelizmente, IP ficou fora das rodovias e isolado desse contexto mas ainda assim as coisas ficaram mais fáceis.
Com a chegada do Banco do Brasil, a cidade se sentiu no primeiro mundo. Tudo era para o BB. O melhor corte de carne, as melhores frutas entre as pouquíssimas opções existentes. Ser bancário era simplesmente o máximo e, ainda mais, do BB. Grandes partidos, gente de primeira classe. Essa fantasia durou até a agencia ser fechada.
Anos depois, chega a internet que traz uma perspectiva revolucionária na capacidade de transmitir informações e ampliar horizontes.
Ao longo dos anos, vão acontecendo reconfigurações políticas, econômicas e sociais que desenharam novos hábitos e comportamentos promovendo novas tramas e contextos híbridos pela convivência entre a força das tradições e o fascínio pelo novo.
Quem viveu as dificuldades dos anos 50 e 60 e a luta para atravessar períodos tão difíceis não deixa de se perguntar onde se perderam os compromissos pela conservação das duras conquistas? Poucas mas significativas. Pelo menos, foram as que tivemos Por que as lideranças e a própria comunidade se deixou arrastar pelas pequenas facilidades e esqueceu o dever fundamental de cuidar de si mesma? Por que tanto descaso com o bem público? E a nossa dignidade, em que esquina foi abandonada? Quando começamos a nos enredar no submundo da política a ponto de tratar as nossas lideranças como mercadores e os nossos brios como produtos em liquidação? Hanna Arendt diz que tudo fica mais complicado quando “os bons perdem as esperanças e os maus perdem o temor.”
Podemos até argumentar que a cidade está crescendo mas são todas construções privadas. Onde estão as obras públicas que há muito tempo não mostram sua cara? Fruto das bolsas tal e qual, tão duramente criticadas, da renda das aposentadorias e das compras a crédito, a cidade cresce mas não aparece. O que faz aparecer é qualidade de vida das pessoas, educação bem estruturada, serviço de saúde bem instalado, prestação de contas transparente, respeito pelo cidadão, cuidado com o meio ambiente. Quando tivemos isso em IP? Nos velhos tempos, a luta era para conquistar a sobrevivência. E, hoje, quais são os objetivos, as metas, as lutas?
Os tempos mudaram e nós acabamos ficando com o pior da tradição e não conseguimos desfrutar do melhor que o mundo moderno nos deu que é a consciência da cidadania. Adotamos, por conveniência, o lixo da sociedade de consumo: o individualismo, a esperteza e a indiferença.
Pão e circo no dia do município. De alguns tempos para cá, é o que sobra para todos.
Acorda
Alagoinha!
MLUIZA
Flávio Lúcio me corrige:
Babá, belíssima e instigante sua crônica sobre o aniversário de Ip. A
medida que ia lendo, parecia que um filme ia passando por minha cabeça. Ainda
hoje sou capaz de dizer, casa por casa, o nome das famílias de Ip. na década de
1950. Apenas uma observação: O Município de Ipaumirim não foi criado em 1951. O
município já existia com sede no Baixio (que substituiu Umari com o advento da
estrada de Ferro). Ipaumirim naquela data apenas passou a ser a nova sede do
Município já existente, deixando de ser vila e ganhando o status de cidade.
Posteriormente (1956), aí sim, foram criados os novos municípios de Baixio e
Umari, desmembrados do Município de Ipaumirim. Beijão, FL
Eu estava pensando na data da fundação em 1954. Valeu a correção!. bj.
Flávio
dá detalhes sobre datas:
A lei que transferiu a Sede é de 1953. A Eleição de 1954 elegeu o
primeiro Prefeito (Adhemar Barbosa) com a sede já em Ip.
Valeu Flávio. Agora tá tudo explicado.
MLUIZA
Publicado no alagoinha.ipaumirim em 11.12.2009
MLUIZA
Publicado no alagoinha.ipaumirim em 11.12.2009
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