“Maicar, contar, legalizar
A sua letra e o seu valor
Vamos maicando, maicando
Que a sorte é cega e onde bate aprega”
A sua letra e o seu valor
Vamos maicando, maicando
Que a sorte é cega e onde bate aprega”
Zé do bigodão cantava as pedras na sua barraca de
jogo no largo da feira onde hoje está a praça São Sebastião. Rosto fino, bigode
cheio, pose de bicheiro e expressão caricata. O ritmo do pregão me encantava.
As fichas coloridas iam espalhando-se ao longo da mesa e minha curiosidade mais
atenta à sonoridade do pregão que aos encantos do jogo. Todo domingo, eu
adorava ouvir a voz de Zé do bigodão até que um dia, sem compreender meu
fascínio, meu avô me levou pra casa e me botou de castigo por estar olhando o jogo.
Criada naquele mundo onde predominava a oralidade, nada me fascinava mais que a
palavra. Isto me fez desenvolver a memória auditiva, o que acabou me sendo
muito útil.
Ao lado, outras bancas de feira: caixotes, sacos
com cereais, legumes, farinha branquinha, rapadura. Lamparinas, chaleiras,
utensílios de cozinha feitos de folhas de flandre, bacias de alumínio. Bancas
de quinquilharias: rouge Royal Briar (era assim que escrevia?), pó Lady, talco
Cashmere Bouquet,esmalte Cutex, sabonete Lifebuoy, Eucalol, Phebo, batons em
embalagens de metal dourado. Fitas, agulhas e outros aviamentos faziam o
colorido das mercadorias. Dentro do mercado, tinha muitas outras bancas. Na
porta do mercado, a engenhoca de Raimundo Paulo fazendo caldo de cana. Mas eu
gostava mesmo era da feira da rua.Na casa do meu avô, o domingo começava quando
os moradores do sítio chegavam. Saltavam dos cavalos, guardavam as selas no
quintal e as armas junto de uma mesa onde meu avô cortava fumo de rolo para
fazer seu cigarrinho. A cidade fervilhava. Para o meu olhar infantil, ela
parecia imensa. Era como se a cada domingo houvesse uma explosão demográfica
comparável apenas aos dias de eleição. As bancas de calçados eram um capítulo a
parte. Eu, com as minhas resistentes sandálias de sola reforçada com pneu,
griffe Anfrísio Baraúna, ficava olhando as botinas, sapatos e sandálias
arrumadas sobre as bancas. O barulho do rasgar do tecido na loja onde meu pai
trabalhava ainda hoje é uma canção nos meus ouvidos. Ao lado, Zacarias
instalava sua máquina de fotos. Do lado da máquina sobre um tripé e coberta com
um pano, ficava um cordão com as fotos expostas esperando que os donos viessem
apanhá-las.
(Socorro Lemos, Maria Luiza (eu) e Fátima lemos, em foto tirada por
Zacarias Pontes
no dia do meu aniversário, em 12.07.1958)
Defronte, a bodega da minha tia Cristina vendia
tudo: prego, parafuso, tinta xadrez, perfume, panela e outras mercadorias que
ela comprava diretamente de Campina Grande através dos viajantes. Com seus
mostruários, vinham as novidades que se usariam logo depois.
Bonequinhas pequeninas, de plástico, eram vendidas
na feira. Eram ótimas para fazer roupinhas porque moviam os braços. O resto do
corpo era teso, não sentava, não dobrava as pernas. Isso não importava porque a
nossa fantasia infantil estava além desses pequenos detalhes. Sempre foram as
rústicas bonecas de pano que fizeram minha cabeça. Até hoje, elas fazem a festa
para os meus olhos. Não essas bonecas de pano modernosas, estilizadas, mas as
legítimas bruxinhas. Tenho uma noiva linda que comprei em Caruaru e uma
bonequinha pequena que me deu um estudante de Esperança (PB).
Comprei uma enorme para minha filha que de tanto
brincar acabou estraçalhada. Nas nossas brincadeiras infantis já exercitávamos
a discriminação com o popular: as bruxas de pano eram sempre as empregadas. As
bonecas industrializadas, brancas e de olhos azuis eram nossas filhas embora
não tivéssemos olhos azuis nem fossemos brancas. Os modelos de beleza, de
comportamento, vamos absorvendo desde criança, sem percebermos o quanto de
preconceito agregamos com as nossas inocentes preferências.
Comer uma fatia de bolo no café de Dona Otília fazia parte da programação de domingo. Os cafés eram lotados: Nen, Chiquinha de João Leandro, Dona Zefa Ribeiro, Dona Maria Ribeiro, Dona Rosária, cada uma com seu diferencial para atender prontamente o gosto dos fregueses. Também tinham as famosas cocadas vendidas nas barracas de feira, menos nobres que os cafés mas bastante frequentados.
Comer uma fatia de bolo no café de Dona Otília fazia parte da programação de domingo. Os cafés eram lotados: Nen, Chiquinha de João Leandro, Dona Zefa Ribeiro, Dona Maria Ribeiro, Dona Rosária, cada uma com seu diferencial para atender prontamente o gosto dos fregueses. Também tinham as famosas cocadas vendidas nas barracas de feira, menos nobres que os cafés mas bastante frequentados.
Cícero Taperoá, que era das bandas de Santa Helena,
cantava numa viola improvisada feita de tábua e lata de doce. Não tinha juízo e
adorava vir no dia da feira cantar na difusora da loja. Meu pai que negociava
bastante com as mulheres da Nova Brasília e de outros cabarés, ás vezes,
recebia débitos em discos mas infelizmente a difusora não tinha prato de disco
de forma que sempre ouvíamos aqueles bolerões apaixonados na radiola lá de
casa. Uma vez, eu e minhas primas insistimos com o dono da Barraca da Confiança
para trocar um Lp por um compacto de Leno e Lílian com a música Pobre Menina.
Ele não trocou, ficamos desapontadas. Afinal um Lp era bem maior que um mísero
compacto que sequer era duplo. A difusora da loja servia para propagandas, para
anunciar enterros e para Cícero Taperoá cantar seus versos que tinham sempre
como refrão “tititititi-tititititi”. O duro era Bosco Sampaio, conhecido como
Horácio, locutor eufórico, anunciar enterros.
- Atenção! Atenção! Não percam, hoje , 'a tal hora o
enterro de fulano de tal!'.
- Bosco, rapaz, você não está anunciando espetáculo de circo, alertava meu pai.
Do outro lado do largo da feira, a bodega de Chico Olívio, carinhosamente chamado Padim Chico, a loja de Senhor Damião, o escritório de Souza Fernandes e mais abaixo, na esquina, no primeiro andar, a Rádio Difusora de Ipaumirim. Na parte debaixo, não lembro o que funcionava. Não recordo ter visto barracas de verdura ou de frutas na feira. Eu tinha minhas ricas goiabas garantidas por João de Melo que as trazia do Sítio Velho.
- Bosco, rapaz, você não está anunciando espetáculo de circo, alertava meu pai.
Do outro lado do largo da feira, a bodega de Chico Olívio, carinhosamente chamado Padim Chico, a loja de Senhor Damião, o escritório de Souza Fernandes e mais abaixo, na esquina, no primeiro andar, a Rádio Difusora de Ipaumirim. Na parte debaixo, não lembro o que funcionava. Não recordo ter visto barracas de verdura ou de frutas na feira. Eu tinha minhas ricas goiabas garantidas por João de Melo que as trazia do Sítio Velho.
No fim da feira, encostava, perto da igreja, o
caminhão que levava o pessoal do Sítio São Pedro e lá no largo da feira, na
frente do seu armazém, ficava o caminhão de Zé Saraiva que ia para o Juazeiro
porque na segunda era a feira do Crato. Em cima do caminhão, iam os que desciam
no percurso pela estrada empoeirada. Era neste caminhão que íamos nós,
estudantes do Crato e do Juazeiro quando começavam as aulas.
No fim da feira, era ‘bebo’ pra tudo que é lado. A
polícia ia recolhendo quem não tinha padrinho. Para os comerciantes, hora de
fazer o caixa. Para nós, crianças, hora de tomar banho, jantar e brincar na
praça antes que a luz apagasse.
Maria Luiza Nóbrega de Morais
Recife, 05.01.2008
Publicado no alagoinha.ipaumirim
em 05.01.2008
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