Se já não é fácil passar dos cinquentinha com a
consciência de que vivemos mais da metade da nossa vida, ainda temos que
encarar as perdas. Dei-me conta disto depois que observei que tenho ido com
mais frequência aos velórios. Ainda bem que as pessoas estão mais civilizadas e
os escândalos estão fora de moda. Livre do descontrole e dos espetáculos de
exorcismo da dor, a morte parece menos constrangedora. Mesmo assim triste.
Sempre será. Perder uma pessoa quer dizer que você nunca mais a terá, nem de
perto nem de longe.
Essa semana, o blog perdeu uma colaboradora de
primeira hora.
MARIA DO CARMO BRITO MENDES |
De memória prodigiosa, Maria do Carmo tinha muito que contar e muitos planos de
escrever. Uma das coisas que ela adoraria escrever era sobre Zacarias Pontes, o
velho fotógrafo de Ip. Ela se encantava com essa ideia no meio de tantas outras
que pretendia contar-nos. Quando fizemos a lista das famílias, ela se lembrava
de muita gente.
Maria do Carmo foi arrancada de Ipaumirim ainda
criança e em circunstâncias muito dolorosas. A perda sua mãe foi traumática.
Até hoje lembro detalhes porque éramos vizinhas e meu avô foi um dos primeiros
a chegar no local da tragédia. Depois, me lembro dos dois, ela e o irmão, Antônio,
almoçando na casa de vovó. Ela chamava meus avós papai Lalá e mamãe Lalá, forma
carinhosa com que as minhas tias adotivas os tratavam. Lembrava coisas da minha
infância que nem eu mesma lembrava.
Seu pai chamava-se Nel Brito, era barbeiro, sua
mãe, Dona Santana, tinha uma escoliose proeminente. Toda tarde, D. Santana
botava a cadeirinha de sola na calçada e ficava sentada. Era uma mulher triste,
reservada e afável. Um dia cansou de viver. Naquela época, não conhecíamos a
depressão e, portanto, não tínhamos noção de quanto ela pode ser devastadora.
Pouco tempo depois eles foram embora. Acredito que
foi uma alternativa que o pai encontrou para preservar os filhos.
Naquela época, criança não tinha as atenções dos
adultos nem nos momentos mais difíceis. Não participávamos dos problemas dos adultos,
mas em compensação ninguém nos tomava em conta para saber o que passava na
nossa cabeça. Não havia essa sensibilidade. Quando meu avô faleceu, ninguém se
deu conta do estrago que a perda fez dentro de mim.
Imagino o que era uma criança passar pelo trauma
que ela passou, conseguir se levantar e guardar dentro de si todas as boas
lembranças da infância. Ela tinha um carinho especial por D. Socorro Pontes,
sua professora, e ficou muito feliz quando, através de Tadeu, pela internet,
recuperou uma fotografia da sua turma.
Reencontrei-a em Cajazeiras quando fomos colegas no
Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Eu era interna e ela externa. As freiras
faziam questão de marcar essa diferença. Na mesma sala de aula, as internas
sentavam em fila separada das externas. O contato era muito pouco porque os
recreios também eram separados.
Ela sempre foi uma garota muito inteligente, mas
muito retraída, quietinha, no seu lugar, tirando boas notas. Nunca se misturava
nas travessuras da turma.
Quando fui embora de Cajazeiras para o Crato e de
lá para a vida, nunca mais a tinha encontrado. Perdi as referências de todas as
minhas colegas externas e fiquei com poucas lembranças das internas. Para ser
sincera, lembro mesmo da minha turma da bagunça que deixava as freiras de cabelo
em pé. Tanto não aguentaram que devolveram nosso passe aos nossos pais
convidando-nos a pedir a transferência do colégio. Quanta intolerância e
incompreensão com a vitalidade e a energia adolescente.
Ano passado a reencontrei no Orkut e retomamos os
contatos. Entramos de cabeça no blog. Acho que o blog foi uma forma dela se
reencontrar com as pessoas da sua infância. Eu tinha a sensação que ela
precisava reconstituir o seu passado, perder o medo das suas dores, vencer suas
lembranças. Abriu o coração nos seus textos. Discreta, como sempre, tinha
receio até de citar nomes, mesmo que fosse falando bem da pessoa. Tinha planos
de ir lá para minha casa, na Festa de São Sebastião, para rever as amizades.
Mamãe era sua madrinha. Esperamos, mas ela não pode ir. Já não estava bem de
saúde e talvez tenha sido melhor se preservar de emoções fortes.
Guerreira, corajosa, feliz com a sua família e com
os amigos, Maria do Carmo nos deixa o exemplo de que é possível reconstruir
sempre, renascer a despeito das angústias e dos sofrimentos que a vida nos
impõe.
Não consegui revê-la, minha mãe foi visitá-la
quando ainda estava bem. Depois foi ao seu velório. De uma certa forma, ela
reencontrou seus laços que haviam ficado no meio do caminho.
MLUIZA
Recife -
PE
Publicado no alagoinha.ipaumirim em 24.08.2008.
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