MLUIZA |
O repicar
acelerado do sino da igreja sinalizava que mais um caixãozinho azul estava
sobre os dois cavaletes da igreja onde ficavam os ataúdes. Às vezes, uma só
pessoa vinha com o caixãozinho no ombro, passava na igreja e seguia para o
cemitério. Assim, naturalmente, as famílias se despediam de suas crianças.
Eu não conhecia o conceito de mortalidade infantil,
apenas achava que passavam na minha porta muitos anjinhos. A curiosidade
infantil me levava ao interior do templo para observar a cena. Não me lembro de
lágrimas. Aquilo era tudo muito normal.
Na sacristia, havia um caixão conhecido como o “caixão das almas”. Nele, eram
transportados os mortos pobres que seriam despejados nas covas. O caixão
voltava esperando o próximo usuário.
Alguns outros eram conduzidos em redes suspensas
por dois paus e carregados por quatro pessoas. Nunca conseguia entender porque
aquilo me fazia tanto mal. Era como se eu olhasse o mundo pela janela e, de
certa forma, mesmo sem entender, eu sabia que aquele mundo era o meu embora as
minhas lembranças particulares de morte tivessem caixão bonito, muito padre,
muita gente, muitas coroas e muitas lágrimas.
Em 1958 ou 1957, não lembro bem o ano, tenho a
imagem de um acampamento, se não me engano, no caminho do Baixio, onde míseras
barracas abrigavam os cassacos que era como se chamavam os trabalhadores
das frentes de serviços durante as secas. Ali trabalhavam e ali mesmo ficavam
acampados.
Lembro também das visitas dos técnicos do Perímetro Irrigado de São Gonçalo (encarregados da frente de serviço em Ipaumirim) que passavam na casa do meu avô e depois seguiam em direção aos acampamentos. Meu avô me levou para visitar esses acampamentos. Eu acho que foi o meu primeiro contato direto com a brutalidade das diferenças de classe e com a vulnerabilidade dos humildes diante das tragédias.
Lembro também das visitas dos técnicos do Perímetro Irrigado de São Gonçalo (encarregados da frente de serviço em Ipaumirim) que passavam na casa do meu avô e depois seguiam em direção aos acampamentos. Meu avô me levou para visitar esses acampamentos. Eu acho que foi o meu primeiro contato direto com a brutalidade das diferenças de classe e com a vulnerabilidade dos humildes diante das tragédias.
Faço esse retorno ao passado para refletir sobre
suas marcas no presente.
É obvio que esse relato é ínfimo, particular, e
muito mais teríamos a rever mas o espaço não permite e ninguém gosta de olhar
pra trás.
Nascida e criada no colo da política interiorana
(meu avô foi prefeito, meu pai e meu tio foram vice-prefeitos), eu assisti, de
um lugar privilegiado, as relações que nos condenaram ao que somos hoje.
Qualquer um de nós que tenha entre 50 e 70 anos
poderia contar muito, muito mais do que eu. E deveria contar, não apenas para
compor a memória do lugar, mas para mostrar que a modernização não foi
suficiente para mudar os métodos. No século XXI estamos fazendo igual aos
nossos avós que nasceram no século XIX.
Luiz Nóbrega (meu avô), nos anos 40, foi prefeito de Baixio quando Ipaumirim ainda era um distrito daquele município. Não vou mexer com datas porque a datação interessa menos do que o assunto em questão. Desde antes do tempo do meu avô, ou seja, ainda com João Augusto, o negócio já vinha desmantelado. A herança dos métodos da velha Fideralina (minha penta-avó), matrona de Lavras da Mangabeira, reproduzia-se entre os seus descendentes. A bem da verdade, em que pese os feitos de Fideralina, sabe-se que há muita fantasia que a tradição oral foi cultivando ao longo do tempo. Mas isso é outra conversa.
Luiz Nóbrega (meu avô), nos anos 40, foi prefeito de Baixio quando Ipaumirim ainda era um distrito daquele município. Não vou mexer com datas porque a datação interessa menos do que o assunto em questão. Desde antes do tempo do meu avô, ou seja, ainda com João Augusto, o negócio já vinha desmantelado. A herança dos métodos da velha Fideralina (minha penta-avó), matrona de Lavras da Mangabeira, reproduzia-se entre os seus descendentes. A bem da verdade, em que pese os feitos de Fideralina, sabe-se que há muita fantasia que a tradição oral foi cultivando ao longo do tempo. Mas isso é outra conversa.
O que aqui interessa é que as relações que se
instalam em Ipaumirim, cultivadas no contexto de uma realidade miserável,
permitiam artimanhas não justificáveis, mas compreensíveis na primeira metade
do século XX.
Não sou historiadora e nem ouso me meter por esses
percursos. Digamos que faço o meu relato e dou meu testemunho. Nasci antes da
fundação do município – sou de 1951 e Ipaumirim é de 1954 – e sendo meu avô
político, acabei convivendo próxima aos acontecimentos embora nem tivesse noção
do que eles significavam.
Lembro de muita coisa ainda que nebulosamente.
Brigas de marido e mulher, aniversários, batizados, moça fugida, reuniões
políticas, festas religiosas e até gente doente ou que levou facada, tiros
etc., vinham para a casa do meu avô. O modelo político que abrigava as
desigualdades sociais permitia essa relação de dependência que se traduzia em
votos.
Sem justificar equívocos, eu diria que os nossos
antepassados foram os desbravadores. Assim sendo, vamos compreender as suas
dificuldades, suas limitações e a forma com que fizeram pactos e estabeleceram
conchavos. Eles estavam no seu tempo.
No período da ditadura militar, as coisas começam a
mudar um pouco. Os filhos e netos das gerações anteriores, com melhores
condições de vida, saíram para estudar em cidades maiores e na capital. As
questões políticas que circulavam no contexto estudantil, apesar da dureza do
AI5, não nos sensibilizaram o suficiente para fazer uma releitura das nossas
misérias.
A ditadura não mudou absolutamente nada no cotidiano
da nossa cidade. Mudou apenas o quartel general da política cearense com a
marca dos Bezerra que passaram a ser os donos do pedaço. A incipiente política
local não perdeu o rumo, entrou firme na ALIANÇA RENOVADORA NACIONAL (ARENA).
Ficamos distribuídos entre Arena 1 e 2 que era uma fantasia compatível com as
desavenças locais.
A compreensão era curta e o horizonte era a modesta
prefeitura e a Câmara de Vereadores. O raio de influência era restrito demais
para ousadias ou aventuras.
Enquanto isso, extasiada com o chuviscar das
primeiras TVs transmitindo a novela Antônio Maria (meu pai dizia que a novela
acabou e ele não conseguiu ver os olhos de Maria Clara), a cidadezinha ia
modernizando o figurino sem perceber que o cenário agonizava.
Com o passar dos tempos e a necessidade natural de
renovação, os ícones da política local jogaram suas últimas cartas tentando
criar um novo estilo de liderança calcado nos mesmos métodos. Mas não contavam
com um fato novo: a velha astúcia foi suplantada pela esperteza descarada. Os
equívocos tornaram-se rotina e aí ficamos nós, como na cantiga da perua. (Pió,
pió, pió, a cantiga da perua é uma só).
Perdemos o bonde. Aprofundamos nossas contradições.
Deu no que deu.
No es lo mismo pero es igual
Não temos pequenos caixões azuis com anjinhos nem sino repicando. Temos dengue, subnutrição, falta de creches e escolas, um vergonhoso rendimento escolar entre os piores do mundo.
Não temos rede carregando defuntos jovens. Estamos
modernos, a expectativa de vida aumentou. Quem pode, paga plano de saúde, plano
funerário. Quem não pode, espera a assistência que não vem. Mas, tanto quem
pode quanto quem não pode está submetido a violência, drogas, desemprego, falta
de perspectivas, falta de fontes de renda.
A cidade cresceu. Certo, cresceu. Desordenadamente,
sem plano urbanístico, sem saneamento. Cresceu como crescem as favelas nas
grandes cidades. Sem saneamento, sem calçamento, sem ruas demarcadas. Os novos
bairros como a Vila São José, o Alto Bandeirantes, o bairro que surgiu no
caminho do 23 onde eram as terras de Luiz Ferreira, o caminho do Baixio, as
ruas atrás do XI de Agosto são casas enfileiradas que não obedecem a nenhuma
norma ou ordenamento urbano.
No rigor de uma linguagem politicamente correta,
grande parte da população vive em assentamentos subnormais.
Um açougue que não passaria pelo mais displicente
exame de Vigilância Sanitária. A localização da lavanderia pública é
estratégica: foi construída quase dentro do riacho. Basta chover que tem água.
Um hospital na beira da estrada.
Quando o bem intencionado secretário de obras disse
ao UOL que nos próximos meses se gastariam cerca de 60 a 70 mil reais para
consertar as estradas, eu fiquei perplexa. Esse valor é dinheiro para mim e para
você que trabalhamos duro. Esse valor não é nada para uma prefeitura. Ainda
mais com essa cheia e a revoada de políticos atrás de grana. Toda a vida foi
assim, nas secas e nas raríssimas enchentes. Agora, pergunte qual foi o
prefeito que prestou contas ao povo do dinheiro que recebeu para cobrir as
emergências. Você conheceu algum? Se conhecer, me apresente que eu peço perdão
pela injustiça. Eu até o momento não conheço nenhum. Aliás, nem para emergência
nem para coisa nenhuma.
Os políticos sempre agem como grandes prestadores de favores, salvadores da pátria. Nunca realizam ações definitivas de implantação ou recuperação para quando novas secas ou novas enchentes ressurgirem. Porque elas ressurgirão, com certeza. Fazem remendos ou distribuição de cestas básicas cobrados na próxima eleição com o voto. Isso é jogo de cena, eles são pagos e muito bem pagos para isto. Até hoje não há na literatura ou na história nenhum exemplo de quem foi prefeito, deputado, vereador etc., sem querer ou por imposição. Não há pena que obrigue ninguém a exercer cargos políticos. Quem está no poder está porque quer mas deve a você, ao seu voto.
Os políticos sempre agem como grandes prestadores de favores, salvadores da pátria. Nunca realizam ações definitivas de implantação ou recuperação para quando novas secas ou novas enchentes ressurgirem. Porque elas ressurgirão, com certeza. Fazem remendos ou distribuição de cestas básicas cobrados na próxima eleição com o voto. Isso é jogo de cena, eles são pagos e muito bem pagos para isto. Até hoje não há na literatura ou na história nenhum exemplo de quem foi prefeito, deputado, vereador etc., sem querer ou por imposição. Não há pena que obrigue ninguém a exercer cargos políticos. Quem está no poder está porque quer mas deve a você, ao seu voto.
Pergunta aí, a quem quiser, se essa inundação
inspirou a classe política conchavista a elaborar algum programa de governo? O
que a reportagem do UOL disse ao mundo, qualquer sujeito observador que vive na
cidade já sabe. E nem precisa saber ler estatísticas nem pesquisar nos sites
oficiais, nos sites de buscas ou onde você quiser. Basta olhar do lado.
E a dita oposição faz o que? Nada! Aguarda a chance
de entrar no próximo conchavo.
O eleitor é um cidadão, precisa se fazer respeitar. O governo não está fazendo nada mais do que a obrigação dele quando atende a população nas suas tragédias.
O eleitor é um cidadão, precisa se fazer respeitar. O governo não está fazendo nada mais do que a obrigação dele quando atende a população nas suas tragédias.
E se alguém está dando seu dinheirinho pessoal, com
certeza, não é pelos seus belos olhos nem pelo medo do fogo do inferno. Não se
iluda pensando que aquela graninha não vai sair de algum outro lugar. Vai sair
da sua própria miséria, da carência de remédio, da falta de profissionais de
saúde para lhe atender como você merece, da ausência de boas escolas para seus
filhos, das epidemias, das secas e das inundações que nos submetem desde os
tempos dos nossos avós.
Voto não paga dívida, nem amizade, nem favor. Millôr Fernandes diz que “líder é quem acompanha a maioria”. A maioria quem faz é você. O duro é você não se importar com isso.
Voto não paga dívida, nem amizade, nem favor. Millôr Fernandes diz que “líder é quem acompanha a maioria”. A maioria quem faz é você. O duro é você não se importar com isso.
MLuiza
Recife-PE
Revisado
por Flávio Lúcio
Fortaleza
– CE
Publicado
no alagoinha.ipaumirim em 20.04.2008
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