MEMÓRIA DA FAMÍLIA MACEDO



Um dia, conversando com meu pai, Vicente Gomes, perguntei pra ele a razão do nome de minha sobrinha, filha de Haroldo, ser Gesilda. Ele me respondeu: “- porque essa é minha última mensagem ao patrão.” Patrão que soube se fazer amigo. Zé Macedo era a referência do meu pai. Ele era capaz de lembrar-se de cada gosto, cada palavra, cada gesto, cada conselho do velho patrão e quase pai. Nunca o vi mencionar o seu nome sem reverência e respeito. Em minha em casa, em Recife, acometido de Parkinson, com dificuldades na fala, fazia questão de me contar passagens de sua vida junto ao amigo. Parecia querer deixar gravado em algum lugar que fosse além dele, a sua eterna gratidão e infinito carinho. Suas vitórias, dores, alegrias eram vividas pelo meu pai como se fossem próprias. E eu, às vezes, ficava me perguntando como se constrói um amor assim incondicional, profundo e infinito. Quando Genilda estava doente, ele já tão castigado de seqüelas do Parkinson que lhe privava do convívio saudável e o condenava a observar o mundo porque já lhe era difícil falar, me chama e diz: “Não seria bom Genilda vir passar uns dias aqui com a gente? Quem sabe ela melhorava um pouco passando uns dias por aqui ?”. Para aproximar Zé Macedo dos mais jovens que não o conheceram, eu poderia dizer que ele era o pai de Bosco e Giseldina, avô de Irma, que a maioria conhece. Para os mais antigos, eu poderia lembrá-lo como o dono da Loja Macedo que ficava na esquina da Rua Coronel Gustavo Lima com o Largo da Feira, atualmente descaracterizado como Praça São Sebastião. Poderia dizer ainda que foi o chefe da família que morou na casa que atualmente é de Dr. Anchieta. Mas eu prefiro dizer que estou falando da mais cara lembrança do meu pai.

(Esta carta eu encontrei guardada no cofre da loja. Foi um presente de Bosco para o meu pai.)


MLUIZA

"Construirás os labirintos impermanentes / que sucessivamente habitarás". (Cecília Meireles, "Desenho", in O Estudante Empírico).


 (José Macedo)


AUTOBIOGRAFIA E REMINISCÊNCIAS
(José Macedo)

Nasci no dia 8 de setembro de 1899, em uma sexta feira, às 6 ½ horas da noite no Sítio Baixa Grande, município de Mulungu , na Serra de Baturité, meus pais Antonio Joaquim de Jesus Macedo e Edeltrudes Camelina de Macedo.
Meu pai antes sua morte, em 8 de outubro de 1914, na Fazenda Veados, município de Canindé  deixou para cada filho uma caderneta escrita de próprio punho com seus dados biográficos e úteis conselhos que depois de 50 anos observo-os e guardo em minha memória. Foi esta caderneta a única herança que nos legou e que muito proveitosa tem sido para mim.
Desde muito tempo que meus filhos mais velhos vinham insistindo para que eu descrevesse algo de minha vida, afim de conhecerem a trajetória de minha existência desde a infância até a data presente em que conto 64 anos de idade.
Sobre este ponto de vista eu vinha vacilando, não por inércia e sim por faltar-me a instrução precisa para este mister, pois os meus conhecimentos adquiridos naquela época, são inferiores ao atual curso primário.
Meu saudoso pai, foi pequeno proprietário na Serra de Baturité, porém, arruinando os tempos e faltando a safra de café, a principal fonte de renda daquela região foi obrigado a hipotecar os imóveis e mais tarde ficar sem eles. Como não tinha outra fonte de renda, resolveu fixar residência em Canindé e, como era homem que havia cursado o seminário de Fortaleza, tendo feito o 3º (terceiro) ano de Teologia, colocou-se como professor no colégio dos frades, naquela cidade, ganhando a importância de 100$000 mensais (cem cruzeiros , moeda atual) com essa importância sustentava uma família de 13 pessoas. Tudo em casa era racionado e a situação melhorava um pouco, quando meus dois irmãos, Moisés e Isaias que se encontravam no Amazonas mandavam algum dinheiro.
Minha irmã mais velha, Ester, que hoje conta com 80 anos, havia estudado com meu pai e adquirido alguns conhecimentos, portanto estava habilitada a alfabetizar as crianças. Botou uma escola para ensinar os meninos da vizinhança cobrando 2$000 mensais (dois cruzeiros) por cada menino.
Naquele tempo por falta de conhecimentos pedagógicos usavam fazer medo às crianças ameaçando aos que não estudassem de botá-los na marinha, o bicho papão, o terror das crianças. Era o tempo da palmatória, do piparote e outros castigos. Eu, que era um pouco inteligente, e o medo da marinha, dedicava-me de corpo e alma aos estudos, dentro de uma semana aprendi a carta do ABC, passei para o primeiro livro e a tabuada.
Nos dias de sexta-feira, tínhamos argumentos de tabuada e soletrar nomes. A professora colocava a meninada em roda, todos de pé, e começava: 5 e 6 noves fora vezes 2, quase todos erravam, então chegava a minha vez, logo respondia 4, pegava a palmatória e dava um bolo em cada um; a mesma coisa acontecia com o soletrar dos nomes, cabendo-me sempre o primeiro lugar, e assim passei 4 anos estudando com minha boa e dedicada irmã que nunca me deu um bolo e tratou-me com especial carinho. Quando ela não sabia mais para ensinar-me, meu pai que já havia deixado o colégio dos frades, empregava-se nas fazendas de homens ricos para ensinar-lhe aos filhos, então eu o acompanhava viajando na garupa dos animais que conduzia.
Foi assim que adquiri os conhecimentos com os quais estou escrevendo estas memórias, pois só estudei até a idade de doze anos. Como não tínhamos residência fixa, fomos morar no Sítio Monte Alegre, de propriedade de uma grande amiga e benfeitora de nossa família, D. Amelina Barbosa Cordeiro. Enquanto a família ali morava, eu fui para Riachão, hoje Capistrano de Abreu, como empregado de Francisco Nunes, ordenado de 25$000 (vinte e cinco cruzeiros). Naqueles tempos, eu contava com meus quinze a dezesseis anos. Em todos esses empregos, eu era sempre tratado com certo desprezo não tendo direito a sentar-me na roda da família do patrão. Em Riachão, o patrão tinha uma fábrica debeneficiar algodão e temendo algum sonho eu ia dormir dentro dela, junto aos fardos de algodão no meio de terrível imundície a fim de defendê-la de algum gatuno. Muitas vezes, depois de deitado, ouvia alguma pancada. Levanta-me e saia vigiando todos os compartimentos reparando as portas se estavam trancadas, etc e etc.
Em Riachão, sonhei com um mundo melhor, consegui juntar 100,00 e resolvi
conhecer a capital do meu Estado: Fortaleza. Tomei o trem da R.V.C. e ali chegando hospedei-me na primeira pensão que encontrei:, a Pensão Machado que, naquele tempo, ficava na Praça General Sampaio, perto da estação da R.V.C. Pagava uma diária de 5$000 (cinco mil réis ou seja cinco cruzeiros) . Era uma época de frio porém o hoteleiro não botou lençol e eu acanhei-me de pedir. Embrulhava-me com a própria rede e fazia travesseiro da roupa.
Em Fortaleza, eu não tinha conhecidos portanto ninguém me orientava. Muitas vezes, perdi-me bem perto da pensão e tinha que dar 200 réis a um garoto para ensinar-me. Como a minha hospedagem ficava perto da estação da via férrea, certa noite encontrei-me na Praça do Ferreira, o ponto mais central da capital. Quis voltar para dormir e fui ao ponto esperar um bonde, olhei para um que se aproximava e vi a placa – Estação, paguei um tostão de passagem, sentei-me no banco, o veículo moveu-se a seguir. Adiante, notei que tomava um rumo diferente da minha hospedagem, mesmo assim segui ao ponto terminal que era justamente a estação de bonde e o veículo ia recolher-se, um tanto acanhado perguntei ao motorista qual o bonde que me conduziria a estação da via férrea, respondeu-me que tomasse na praça o bonde que tinha esse nome. Assim, tive que voltar e fiz como me foi ensinado, neste vai e vem foram gastos 300 réis (valor atual de 30 centavos).
Era minha intenção arranjar um emprego no comércio, não trazia nenhuma carta de recomendação, portanto não era portador de credenciais que me recomendassem. Mesmo assim, fui bater à porta da firma J. Lopes & Cia, estabelecidos com o comércio de tecidos, armazém de miudezas e artigos de exportação. Dirigi-me ao chefe da firma, Sr. João Lopes, homem de cara dura e autoritário, falei o emprego, fez-me algumas perguntas, se sabia ler e escrever, mandou assinar o nome, etc. Depois de minucioso interrogatório, disse que ia colocar-me e que me apresentasse ao gerente, Sr. Plínio, no armazém da praia, de compras de osso, crina de animais, chifres, etc. e as refeições seriam em sua casa residencial. Conforme as instruções recebidas apresentei-me ao gerente, assumi o emprego e para o almoço este disse-me que chegasse em casa do patrão 11 1/2horas. Como eu tinha um relógio Roscópia que me havia custado 5$000 réis (cinco cruzeiros) cheguei em cima da hora pois sempre gostei de ser pontual e cumprir ordens. Quando fui chegando em casa do patrão, o pessoal estava terminando o almoço e o chefe foi logo passando um áspero carão por eu ter chegado atrasado. Finalmente, mandaram que eu entrasse, com muito acanhamento, vestido de trajes humildes, com meus sapatos de couro de bode, saí pisando os tapetes do Sr. João Lopes. Sentei-me e pouco comi, dado o acanhamento que me encontrava.
Depois de um mês trabalhando na praia, fui transferido para o armazém de miudezas, na Rua Major Facundo. Como na época eu tinha uma boa letra e pouco se usava máquina de escrever, fui designado para o serviço do borrador, cálculo e extrair fatura que era escrita com tinta de cópia.
Naquele tempo, não havia Ministério do Trabalho, o empregado trabalhava as horas que o patrão quisesse, sem direito a qualquer extraordinário. Assim, entrávamos no armazém às 6 horas da manhã e saíamos às 7 da noite, muitas vezes ia até às 9 horas.
Eu atravessava uma das fases mais difíceis da existência humana que era o tempo da adolescência o excesso de trabalho físico e mental e a alimentação deficiente, pois alimentava-me duas vezes por dia em horas retardadas, causou-me um grande esgotamento nervoso que, apesar de ter tomado muito remédio, ainda hoje sofro as consequências.
Existe um adágio que diz: mal de muitos, consolo é. No mesmo armazém que eu trabalhava, tinha um rapazinho da minha idade por nome Raimundo Ribeiro, filho de um velho carpinteiro carregado de família, este era mais humilde do que eu, nosso ordenado era o mesmo com a diferença que eu tinha boia e ele à sua própria custa. Muitas vezes, quando o armazém fechava para o almoço, ele não ia em casa e depois dizia-me , o meu almoço hoje foi um pão de tostão. O pobre rapaz vinha trabalhar com roupa remendada. Certa ocasião, o patrão reclamou que o traje dele não estava decente, respondeu ser o ordenado insuficiente para comprar roupas.
Mas seu Ribeiro era persistente e trabalhador, cursou a Fênix Caixeiral  e diplomou-se em perito contador. Deixou o emprego, conseguiu algum crédito, foi negociar por conta própria, casou-se e fez uma certa independência financeira, porém de tanto passar fome na sua adolescência terminou bem moço morrendo de tuberculose.
Cerca de um ano durou minha via crucis em Casa de J. Lopes & Cia. Toda sorte de humilhação me era imposta, algumas vezes encontrava cédulas de dinheiro entre as folhas do borrador, experimentando a minha honestidade porém a tentação do vil metal não me seduziu. Corria o ano de 1918 quando vem do Amazonas meu irmão mais velho por nome Isaías, eram quatro os que se destinaram ao inferno verde. Moisés e Natal lá ficaram sepultados, regressaram Joel e Isaías, este último trouxe um pequeno capital e convidou-me para seu auxiliar no comércio, estabelecendo-se na cidade de Aurora onde fomos todos residir.
Inicialmente, a coisa não correu muito bem para nós. Com o comércio de tecidos meu irmão era um homem desambientado devido ao longo tempo que passou no Amazonas, não conhecia o ramo do negócio que abraçou e quando ia à praça fazer compras era sempre enganado pelos tubarões.
Distante de Aurora trinta quilômetros, achava-se a povoação de Boa Esperança, reduto do célebre caudilho José Inácio de Souza, grande chefe político e protetor de cangaceiros. Aquela povoação tinha seu nome na história pois lá que os célebres Viriatos, em anos remotos, se estabeleceram com vários bandidos que saquearam as cidades vizinhas, inclusive o estado da Paraíba que fica nos limites. Como Boa Esperança, oferecia certa vantagem comercial, resolvemos transferir a casa comercial para lá onde fomos residir com a família. Efetivamente fazíamos mais negócio, porém o meio social era o pior possível. Os habitantes da localidade eram pessoas rudes e bem poucos sabiam ler e escrever, não havia escola para alfabetização das crianças e nem sequer tinha uma agência de correio. A cidade de Milagres era a sede do município onde residia o Cel. Domingos Furtado, poderoso chefe político e adversário de José Inácio. Na época das eleições, este juntava seu pessoal, botava à frente 20 ou 30 cangaceiros e lá ia votar. O adversário, por sua vez, armava outro tanto de cangaceiros e desta maneira dava-se o pleito que aliás era a bico de pena, naquela época não havia voto secreto.
Oriundos dos sertões de Pernambuco, existia um grupo de cangaceiros chefiados por Luiz Padre e Sebastião Pereira, estes quando se viam acossados pela polícia daquele estado, refugiavam-se na proteção de Major José Inácio, no Sítio Barros, onde estavam garantidos. Os bandidos que usavam duas a três cartucheiras, um grande punhal e rifle, vinham sempre fazer feira em Boa Esperança. Muitas vezes, entravam em nosso estabelecimento 20 a 30 bandoleiros, pediam apenas cigarros, lenços e outras coisas de pequeno valor. Naquele tempo, não havia facilidade de crédito e se bem que procurássemos desenvolver outros ramos de negócios como fosse algodão e peles, pouco lucro tínhamos.
Ao terminar o ano de 1918, apareceu, em todo Brasil, uma grande epidemia que recebeu o nome de Bailarina ou Febre Espanhola por ter sido oriunda da Espanha e alastrou-se pelo mundo inteiro. No Rio de Janeiro, os carroceiros saíam pelas ruas gritando de porta em porta – tem cadáveres? Tem cadáveres? – e os que iam encontrando colocavam nas carroças e jogavam nos valados pois nos cemitérios não haviam cômodos para sepulturas separadas. Naquele tempo, minha família estava residindo em Aurora e eu encontrava-me só em Boa Esperança. Perto da casa que eu residia era a igreja e o surto epidêmico tomou conta da vila e do campo em geral. Nisto, fui acometido do terrível mal e mais dois vizinhos, um do lado esquerdo e outro do lado direito. O sino passava quase todo dia dobrando sinal anunciando a morte daqueles que foram contagiados pela doença.
Como encontrava-me sem ninguém para tratar-me a não ser uma velha quase caduca, por nome Perpétua, que algumas vezes trazia uma xícara de chá ou um caldo salgado, minha boa irmã Ester sabendo da minha situação foi dar-me assistência. Tanto tratava de mim quanto dos dois vizinhos e mais pessoas que pudesse. Certa noite, eu acordei e ouvi uma exortação: “Jesus, Maria, José, minha alma vossa é, eu vou com Jesus, Jesus vai comigo” pois eram os meus dois vizinhos que estavam morrendo, avalie o leitor minha situação naquele momento.
Dias depois eu melhorava e minha irmã foi atacada pela doença e teve que voltar para Aurora, tanto ela como Juventude, outra irmã, estiveram às portas da morte.
Iniciando o ano de 1919, a epidemia continuava e por onde se passava via-se o luto, a orfandade, e a viuvez. Os sertanejos que sobreviviam ao terrível flagelo, ansiosos aguardavam a vinda do inverno. Passou-se o mês de janeiro, e veio fevereiro, nem uma gota de água caiu das nuvens. Teve início o mês de março e o homem do sertão com os olhos fitos no nascente procurava divisar um relâmpago que prenunciasse a vinda de uma chuva, tudo em vão. Ainda restava a última esperança, era o dia 19 de março, dia de São José, promessas e fervorosas preces foram elevadas aos céus, mas as benfazejas chuvas não chegavam e, assim, mais um flagelo caiu sobre a terra mártir e o povo pobre foi lutar conta a fome e a nudez.
Ondas de retirantes esmolambados e famintos perambulavam pelas estradas sem rumo certo implorando uma esmola pelo amor de Deus.  Os criadores, depois de esgotarem os últimos recursos de rama de juazeiro, xiquexique e mandacaru, saíam com seus rebanhos por estrada afora com reses magras à procura de forragem. Aqui, ali, acolá caía uma rês extasiada que servia de pasto aos urubus. Conheci um criador por nome José Tavares, proprietário de dois sítios, um denominado Algodões e outro no Riacho de Cuncas que possuía 280 reses, quando iniciou a seca, e 17 bois mansos. Lutou, gastou suas economias no tratamento da criação e ao terminar a seca disse que havia escapado apenas 9 bois mansos, o restante do gado morreu todo.
O inverno de 1920, apesar de ter começado tarde e terminado cedo, deixou alguma fartura.
Dando um passo atrás, quero falar sobre nossas atividades comerciais de 1919 a 1920. Existia naquele tempo o prolongamento da Estrada de Ferro Baturité, cujos trabalhos começavam de Aurora à região do Cariri, como o comércio de tecidos estava fraco, fomos fornecer aos operários daquela ferrovia em Ingazeiras onde demoramos cerca de um ano, como os pagamentos eram muito retardados pouco lucro tivemos.
Quero agora citar um caso que me ocorreu como fornecedor. Eu fornecia a um operário por nome Luiz Domingos, adiantei-lhe uma rede no valor de 25,00, deu 5,00 por conta e ficou devendo o restante e deixou o fornecimento. Mandei-lhe um recado pedindo que viesse pagar o restante. Certa noite, por volta de 2 horas da madrugada, uma pessoa bate á porta. Vou atender com certa precaução, mesmo sem acender a lamparina, abro apenas a parte superior da porta e noto á minha frente o Luiz Domingos com a rede enrolada que vinha me entregar e pedir os 5,00 que me havia dado. Recebi o embrulho e disse que somente pela manhã poderia restituir-lhe aquela importância, logo que o homem saiu acendi a luz e verifiquei que a rede estava toda rasgada de faca.
Pelas 7 horas da manhã, abri o fornecimento onde eu dormia e momentos depois aparece o operário que vinha receber os 5,00. Neste momento, chegam outros operários para se fornecerem. O Domingos com seu grande punhal à cinta começou a insistir para receber o dinheiro que me havia dado, por último, começou a injuriar-me com palavras de baixo calão. Apesar de minha inferioridade física e de arma, pois apenas uma pequena faca enferrujada que estava sobre uma banca que pus à mão, e fazendo da fraqueza, força, pus o homem para correr.

Continuando a publicação da AUTOBIOGRAFIA E REMINISCÊNCIAS, de José Macedo, trataremos do período de 1921 a 1950. Através dos registros, temos importantes observações sobre o período. A vida tangenciada pelas secas periódicas, a migração em busca de melhores condições de vida, a rotina produtiva do sertão semi-árido, o detalhamento de técnicas agrícolas utilizadas, a dificuldade em educar os filhos, este texto nos traz, além da memória da família e do espírito empreendedor de Zé Macedo, significativos registros de uma época que não poderiam deixar de ser publicados.
Tudo isso me faz lembrar um verso de Pablo Neruda que inclusive já publicamos neste blog mas vale a pena repetir:

De onde nasce a chuva
Não sei quando chegamos a Temuco.
Foi impreciso nascer e foi tardio
Nascer de verdade, lento
E apalpar, conhecer, odiar, amar,
Tudo isto tem flor e tem espinhos.”
(Pablo Neruda)

Os anos de 1921 e 1923 passaram-se sem acontecimentos dignos de menção, apenas que neste último ano resolvemos acabar com a casa de negócios. Meu irmão Isaías retirou-se para Fortaleza e eu, dos lucros que me coube como sócio , uns 18.000,00, ficaram em folhas da Estrada de Ferro aguardando pagamento.
De 1923 a 1924, o algodão, a principal fonte de renda do Estado , que os preços anteriores oscilaram de 10,00 a 15,00 por arroba de 20 quilos em caroço, subiu para 40,00. Neste ano, resolvi casar-me com Dona Soledade Macedo, filha de meu primo Vicente Macedo, falecido recentemente a 3 de julho de 1963.
Antes de casar-me, fui a Fortaleza, troquei a importância que tinha em folha da Estrada de Ferro estabeleci-me em Alagoinha – atual Ipaumirim onde fixei residência. Além das compras de tecido que fiz em trocas de folhas, comprei outra parte á crédito.
Porém as coisas não ocorreram como eu esperava, no ano seguinte o algodão caiu de preço e os tecidos foram baixando, até que em 1926 para 1927, caiu para 10,00 a arroba, na proporção que o algodão baixava, assim era também o tecido. Em tal situação, fui obrigado a deixar o comércio e retirar-me para Olho d’Água, lugarejo perto de Ipaumirim, fui tomar conta de uma propriedade de Felizardo Vieira. Comprei um velho locomóvel de beneficiar algodão (1) e fui comerciar com este produto, neste negócio posso dizer que a emenda foi pior que o soneto. Como o maquinismo só vivia desmantelado e continuamente em conserto, resolvi vende-lo pela metade do preço indo depois tratar da agricultura.
Os terrenos do Sr. Felizardo que estavam abandonados, tratei de cultivá-los, mandei fazer cerca e plantio de cana, roçado para cereais e algodão. Eu até aquela data nunca havia pegado em enxada, foice ou machado para trabalhar, porém tudo isto eu enfrentei, muitas vezes quando faltavam as chuvas do inverno, eu com farol aceso aguava arroz até 9 horas da noite. Estávamos no ano de 1929, ano este que me nasceu o terceiro filho e foi batizado com o nome de Evandro, os anteriores eram mulheres por nome Gesielda e Gesilda. Em virtude de o proprietário querer receber o terreno fui obrigado a entregar, então retirei-me para um pequeno terreno que comprei no município de Aurora, por nome Mané, onde fui morar com a família numa velha casa de taipa, toda esburacada. No primeiro ano, botei um roçado de 20 tarefas, o inverno foi bastante fraco e a colheita não deu para as necessidades. Enquanto isso, em 1930, nascia um filho – Juarez. Aguardei o próximo ano com outro roçado que teve sorte igual ao primeiro. Esperávamos um bonançoso inverno em 1932, deu-se justamente o contrário, foi uma seca quase igual a 1919 com a diferença de ter havido alguma pastagem e ter escapado parte do gado. Naquele ano, nasceu Gesilda.
Eu e meu irmão Joel tínhamos uma parte de gado e como vaqueiro Sr.Nesinho Saraiva que era muito zeloso, fomos escapar esse gado no município de São Pedro, distante umas 18 léguas de minha residência.
Marchamos para o ano de 1933, houve um inverno regular, porém, a praga da lagarta disseminou grande parte da lavoura. Mais um filho nasceu naquele ano, o José.
Eu e Dona Soledade, se bem que não gozássemos saúde, trabalhávamos sem parar, ela como um dínamo, cuidava da luta doméstica cozinhando para trabalhadores, costurando para crianças e, às vezes, ia ajudar-me na colheita do feijão e minhas outras coisas que deixo de enumerar. Graças a Deus, não faltava o necessário para manutenção da família, sempre havia fartura em minha casa.
Como a colheita de 1933 tinha sido pequena, achei que devia aproveitar a represa de um pequeno açude de meu terreno fazendo vazante de arroz, mandei um caboclo que morava comigo, por nome Antônio Cândido, procurar comprar as sementes para semear e depois mudar para a água. Encontrou um arroz vermelho debulhador, como não havia outro, resolvi encanteirar as sementes para depois de nascidas mandar para a água rasa das represas, era um serviço que eu nunca havia feito. Junto com Antônio Cândido, demos início ao trabalho, com um espeque furamos o chão colocando as mudas. Muitos dias decorreram naquele serviço até que conseguimos fazer uma grande vazante.
O arroz prosperava com vantagem, mas na proporção que a água afastava a terra, ia secando e era preciso aguar, era um serviço penoso e pesado. Fazia-se regos em torno da vazante e com o auxílio de latas íamos botando água para irrigação, isto durava muito tempo. Ao terminar o dia, sentíamo-nos muito cansados daquele trabalho estafante. Finalmente, o arroz florava, granava e começava a amadurecer, porém uma onda de passarinhos invadia o arrozal e por mais que procurasse afugentá-los, o estrago era muito grande.
Por último, achei que devia desprezar a vazante se bem que tenha colhido umas quartas de 80 litros.
Nos dias de sábado que era data das feiras em Aurora, Antônio Cândido levava um burro carregado, eram duas quartas, vendia ao preço de 18,00 apurava Cr$ 36,00. Com esse dinheiro comprava as utilidades necessárias para passar a semana.
A safra de algodão de 1933 produziu 40 arrobas que vendi ao preço de 12,00 por unidade.
Preparei-me para o ano de 1934, mandei botar um roçado de 20 tarefas. Plantei a semente no seco e aguardei o inverno. Ele não tardou e antes de terminar o 33 caíram as primeiras chuvas, nasceram as sementes, que foram semeadas, continuando um copioso inverno que tudo criou com abundância. Eu e Dona Soledade éramos incansáveis na luta pela vida, às 4 horas da madrugada, com chuva ou sem chuva, eu já estava no curral com a lama pela canela, desleitando as vacas. Quando chegava em casa com o balde de leite, a patroa estava com o café feito que bebia-o com pão de milho; depois, fumava um cigarro feito de fumo bruto e ia para o moinho moer o milho para o angu dos trabalhadores. Enquanto isto, Dona Soledade colocava o coalho no leite para coagulação e preparava o queijo que era também uma das fontes de renda que tínhamos, vendíamos o quilo ao preço de Cr$ 2,00. Convém notar que tínhamos outros rendimentos, como criávamos muitas galinhas elas produziam muitos ovos, quando aparecia comprador eram vendidos a Cr$ 5,00 o cento. Quero falar também na venda de frutas. No Sítio Bordão de Velho, morava o velho João Procópio, o nosso terreno produzia grandes e saborosas bananas, Procópio que negociava com o artigo sempre nos comprava ao preço de Cr$ 1,20, o cento.
Durante o tempo que trabalhei na lavoura, o 34 foi o ano mais bonançoso, ainda hoje guardo gratas recordações. Naquele ano, colhi muito milho e muito feijão e a safra de algodão foram 250 arrobas, como deu um bom dinheiro, vendi ao preço de Cr$ 14,00 a arroba.
Fato é que ao terminar o ano, eu tinha saldado a elevada importância de dois mil e quinhentos cruzeiros, Cr$2.500,00.Depois de 10 anos de revezes, as coisas começavam a melhorar. Penetrávamos no ano de 1935 quando nasceu Giseldina, tivemos mais um bom inverno e boa safra de algodão, saldei mais um pouco de dinheiro que ia acumulando.
Isolados do mundo civilizado vivíamos naquele pé de serra convivendo com gente rude e ignorante, não se ouvia um rádio e nem se lia um jornal, algum acontecimento importante sabia-se por ouvir dizer.
Ainda no Mané, nasceram mais dois filhos, Genilda e Antonio, a primeira em 1938 e o segundo em 1940.
A meninada ia crescendo e os mais velhos precisavam estudar, então eu conseguia mocinhas pobres que passavam alguns tempos em nossa casa ensinando-os, eu mesmo auxiliava. Nunca pensei em formar um filho, minha maior aspiração era que todos fizessem o curso primário.
Depois de muito trabalho, sacrifícios e economias, juntei um pequeno capital, entendi de residir em uma cidade afim de ensinar a meninada. Como conhecia bastante o comércio de Ipaumirim era lá que eu queria estabelecer-me, porém Dona Soledade não concordou, e, para não contrariar-lhe a vontade, tive que ir para Aurora. Foi um verdadeiro fracasso, toda família adoeceu a ponto de morrer a filha mais velha Gesielda e Dona Soledade escapou por milagre, minhas despesas com médicos e farmácia eram grandes, nada fiz no comércio. Neste mesmo ano, estiveram em Aurora uns padres beneditinos vindo de Garanhuns no Estado de Pernambuco que andavam angariando crianças para estudarem por conta da congregação afim de se ordenarem. Com eles, foi o meu filho mais velho, Evandro. Convém notar que na ocasião que viajou eu não me encontrava em casa; Giselda que passou uns tempos estudando, em Aurora, hospedada em casa de Vicente Tavares e havia feito exame de admissão, internei-a no Ginásio das Dorotéias em Cajazeiras, no estado da Paraíba. Desta maneira, os dois primeiros filhos davam os primeiros passos no caminho das letras.
No ano de 1941, resolvi mudar-me para Ipaumirim (antiga Alagoinha) para onde transferi minha casa comercial, ali um raio de luz passou sobre mim e novos horizontes descortinaram-se em minha presença, fazia bastante negócio e, dentro de pouco tempo, tornei-me o maior comerciante de tecidos da localidade. A meninada, em idade escolar, estudava e assim tudo marchava bem.
Como no Ceará existem as secas periódicas, eis que surge uma em 1942, como o comércio de tecido fracassava, resolvi fornecer à Estrada de Rodagem que marchava em direção a Milagres. Para mim, foi um período de grande, grande sacrifício em virtude do meu estado de saúde um tanto abalado; por felicidade, minha irmã, Juventude, veio internar-se no fornecimento e grande serviço prestou-me. Não me recordo bem a data mas parece ter sido em junho que os meus vizinhos de terra do Mané, os Cassianos, desejavam retirar-se para São Paulo e assim, comprei-lhe os terrenos pelo valor de seis mil cruzeiros – Cr$6.000,00. Para conseguir essa importância, fui obrigado a vender sessenta reses. Terminado o 42, dei balanço e verifiquei um lucro satisfatório. Naquele ano, nasceu João Bosco que é o mais moço dos filhos.

Depois de três anos de ausência, Evandro veio passar férias em casa e não quis voltar ao Mosteiro de Garanhuns. Então internei com Juarez, que nasceu em 1930, no Ginásio Salesiano, em Cajazeiras. Naquele tempo, Evandro, que contava 14 anos de idade, havia mudado de vocação, queria ser médico. Ao terminar o ginásio, botei-o para fazer o primeiro ano científico no Colégio Cearense. Grande surpresa foi a minha quando recebi uma carta do rapaz pedindo permissão para cursar a escola preparatória de Cadetes, em Fortaleza. Como sempre respeitei a vocação de todos os filhos, não hesitei em dar permissão, hoje o rapaz coloca sobre os ombros os galões de capitão do Exército Brasileiro.
Juarez estudou o primeiro ano e fez a primeira série, no segundo foi reprovado em História, seria preciso fazer a segunda época, porém o garoto não queria mais estudar, insistia para que fizesse a prova de segunda época, depois deixaria o estudo. Como não quisesse, atender o meu apelo, fui forçado a ameaçá-lo caso não fizesse a segunda época. Eu que de História não sabia patavinas, fui bancar o professor do rapaz, pegava um livro de História e um dicionário e ia estudar para depois ensinar. Assim foi durante o período de férias. Finalmente, na época, Juarez que necessitava de uma nota alta para passar, tirou um nove, foi aprovado, então no ano seguinte voltou a estudar.
Juarez cursava a terceira série ginasial. Certa ocasião fui visitá-lo, em Cajazeiras, pedi ao diretor para deixar ele sair comigo a visitar os tios que lá moravam. Quando caminhávamos, ao passar sobre um pontilhão que tem no caminho, ele falou-me: - papai, queria que o senhor consentisse que eu fosse salesiano. Fiquei um tanto surpreso com aquele pedido, não permiti no momento mas vendo que persistia, consenti, hoje é sacerdote servindo no Ginásio Salesiano, em Recife.
Foi, talvez, em 1945, que internei Gesilda no Ginásio das Dorotéias. Giselda que lá estudava tinha saído apenas com o segundo ano normal.
Depois que Gesilda concluiu o ginásio, internei-a no Colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza, onde fez o curso científico. No ano seguinte, foi aprovada no vestibular de Odontologia e hoje é cirurgiã dentista com mais o curso de especialização na policlínica do Rio de Janeiro, onde reside.
Seguiu-se o José Filho que estudou no ginásio de Cajazeiras e Patos, o científico no Colégio Castelo, em Fortaleza. Terminando o científico, iria fazer o vestibular para Farmácia, porém o rapaz, naquela época, entregou-se a diversões pouco recomendáveis, desprezou os estudos e foi reprovado. Cerca de três anos passou sem estudar e causando-me certo desgosto, finalmente o Juarez que naquela época ainda estudava Teologia em São Paulo, pediu-me que o mandasse para lá., o que providenciei. Arranjou emprego pra ele no S.E... (???), auxiliou-o no vestibular, hoje é economista residente naquela capital.
Giseldina estudou no ginásio de Cajazeiras e diplomou-se professora em Catolé do Rocha, na Paraíba, foi nomeada professora pública e lecionou em Ipaumirim cerca de oito anos, hoje, é funcionária federal, residente no Rio de Janeiro.
Genilda cursou o ginásio em Cajazeiras e diplomou-se pelo Colégio Santa Isabel, em Fortaleza, atualmente morando nos Estados Unidos.
Antônio, o penúltimo filho, fez o ginásio em Cajazeiras e concluiu o científico no Colégio São João, era desejo dele seguir Medicina mas imitou o José, da mesma maneira não passou no vestibular e certas contrariedades causou-me. Porém, como o Juarez é sempre o Cirineu que me ajuda a carregar a cruz, mandei-o para Recife e hoje é funcionário do Banco da Indústria de São Paulo.
João Bosco, não tendo gosto pelos estudos, limitou-se ao diploma de perito contador, exercendo atualmente atividades comerciais.


" O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores , de folhas.."
(Manuel Bandeira)


 No dia 18 de setembro de 1949, data em que comemoramos as bodas de prata, deu-se o casamento de Giselda com Manoel Josino da Costa, funcionário do Banco do Brasil, atualmente fiscal de consumo, residente em Bauru no Estado de São Paulo. Em 17 de setembro de 1953, casou-se Evandro com Lenira Barbosa.
Se no decorrer de minha existência passei por dissabores e revezes, também passei por momentos de glória e satisfação. No dia 8 de dezembro de 1958, Juarez ordenava-se sacerdote, naquele ano registrava-se mais uma seca no Ceará e as coisas tornavam-se difíceis, eu queria então receber o neo sacerdote com festividades para celebrar sua primeira missa, não medi esforços nem poupei sacrifícios. Um dos maiores desejos do novo padre era que Soledade conseguisse 100 crianças para fazer a primeira comunhão, em época que não havia inverno era um tanto difícil, porém Dona Soledade não esmoreceu, arrabaldes da cidade e sítios vizinhos convidando a meninada e prometendo dar o enxoval aos que não pudessem comprar.
Eram decorridos 10 anos que a igreja de Ipaumirim não recebia limpeza, mandei limpar, finalmente tomei todas as providências para que no dia 21 de dezembro, data em que Juarez cantaria sua primeira missa, nada faltasse.
Como nossa casa fosse insuficiente para hospedar os parentes e amigos, arranjei mais duas casas.
Na data marcada, tudo estava pronto, comestíveis, bebidas, fotógrafo, cinegrafistas, etc. Dona Soledade mandou fazer 300 sacos de papel de seda nos quais colocou merenda que foram distribuídas com 300 crianças que comungaram naquele dia, convém notar que às seis horas da manhã foi servido aos neo comungantes um copo de leite. Posso dizer que foi uma das cerimônias mais belas que assisti em minha vida.
Durante a celebração da missa de Juarez que foi auxiliada ou assistida por nove padres, dava-se o casamento de duas irmãs ao mesmo tempo, Gesilda e Genilda, a primeira com Dr. Firton Achá, boliviano, e a segunda com Sr. Lester Dale Hedrick, americano.
O fotografo bateu 100 fotografias que as tenho colocada em álbum.
Foi, portanto, excedida a minha expectativa, os meus sacrifícios não foram baldados (?). Quando naquela época eu aspirava o curso primário a meus filhos, hoje eu vejo que dos nove existentes, seis são portadores de diploma.
Recordando o tempo da minha existência até a data presente, vejo como é difícil o caminho da vida, quantos empecilhos encontramos.
Aqueles que casam e constituem família assumem perante as leis divinas e humanas um grande compromisso e, para desincumbir-se desta divina missão é necessário muita renúncia, muito desprendimento e sobretudo muita coragem.
Uma família constituída de nove filhos, cada um com uma natureza diferente, seria necessário que seus genitores tivessem grandes conhecimentos de psicologia a fim de dar-lhes o tratamento adequado, então se sente a grande dificuldade de educar por não ter estes conhecimentos.
O fotografo bateu 100 fotografias que as tenho colocada em álbum.
Foi, portanto excedida a minha expectativa, os meus sacrifícios não foram baldados (?). Quando naquela época eu aspirava o curso primário a meus filhos, hoje eu vejo que dos nove existentes, seis são portadores de diploma.
Recordando o tempo da minha existência até a data presente, vejo como é difícil o caminho da vida, quantos empecilhos encontramos.
Aqueles que casam e constituem família assumem perante as leis divinas e humanas um grande compromisso e, para desincumbir-se desta divina missão é necessário muita renúncia, muito desprendimento e sobretudo muita coragem.
Uma família constituída de nove filhos, cada um com uma natureza diferente, seria necessário que seus genitores tivessem grandes conhecimentos de psicologia a fim de dar-lhes o tratamento adequado, então se sente a grande dificuldade de educar por não ter estes conhecimentos.
Se errei, muitas vezes, na educação doméstica aos filhos foi porque não sabia acertar porém minha intenção era boa. Atualmente, vejo muitos pais de família modernos que criam os filhos deixando fazer tudo que entendem sem advertir-lhe em coisa alguma, pode ser que estejam certos, mas também pode ser que não estejam.
Reconheço que muitas ocasiões fui austero a fim de fazer valer minha autoridade para que os filhos chegassem a ser o que hoje são.
Graças a Deus não me envergonho e vejo que todos os meus filhos são atenciosos, honestos e delicados.
Ainda bem que, há pouco tempo, ouvi ser pronunciada pelo Padre Juarez as seguintes palavras: “o que seríamos de nós atualmente se o papai não nos tivesse criado da maneira que nos criou.”
No ano de 1942, chegava do município de Cedro, um rapazinho por nome de Vicente Gomes de Morais que vinha a Ipaumirim para colocar-se como feitor na estrada de rodagem. Um cunhado dele, por nome Raimundo Lemos, falou-me para empregá-lo como caixeiro em minha casa comercial, aceitei.
Inicialmente, o rapaz demonstrava pouca prática do ramo de tecido, porém via-se que era vontadoso e trabalhador. Marquei para ele um salário de cem cruzeiros mensais.
O tempo corria e cada dia que passava o rapaz ia desenvolvendo os seus conhecimentos, obedecia-me como se fosse um pai, zelava os meus interesses era honesto a toda prova.
Decorrido um certo tempo, Vicente não tinha mais ordenado marcado, retirava o necessário para suas despesas, no fim do ano quando dávamos balanço, eu dava-lhe uma gratificação.
No ano de 1960, meu genro, Manoel Josino, tendo sido transferido para São Paulo, como fiscal de consumo, resolvi comprar-lhe a casa de residência com os respectivos móveis e mudar-me para Fortaleza.
Diante dessa resolução, admiti Vicente como sócio e no ano de 1962, afastei-me do comércio, ficando ele como único dono. Posso acrescentar que meu antigo empregado foi um dos maiores amigos que tive em minha vida. Grandes incômodos do meu aparelho digestivo acompanhado de grandes dores traziam-me sempre mal humorado, Vicente sabia dissimular os meus aborrecimentos e estava sempre à frente dos negócios resolvendo tudo que estava a seu alcance. Posso afirmar que aquele rapaz muito contribuiu para ajudar na educação de meus filhos e aumentar meu patrimônio.
Neste pequeno opúsculo, faço um apelo aos meus filhos para serem amigos leais e dedicados de Vicente Gomes de Morais como pessoa de reconhecimento pelos bons serviços que me prestou.
Há quarenta anos, conhecia-se o sul do país pela geografia, bem pouca gente visitava aquelas longínquas paragens tão distante do Nordeste. A única via de transporte para chegar-se até lá era o navio. Durante o período de governo de Epitácio Pessoa é que o nordeste brasileiro começou a desenvolver as estradas de rodagem, o automóvel começou a penetrar no interior dos estados.
Outro grande presidente que tivemos, foi o Dr. Getúlio Vargas que governou o país por cerca de vinte anos tanto como ditador que galgou o poder mediante o triunfo da revolução de 1930 como por eleição em que prevaleceu o voto secreto, uma das leis criadas por ele durante o período discricionário. Mais tarde, foram surgindo os campos de aviação, tanto nas capitais como no interior dos estados, então o povo nordestino começou a movimentar-se, as distâncias foram encurtando.
Hoje, existe a grande aproximação entre sul e norte tanto pela via aérea como pela terrestre. Eu que jamais pensei em conhecer a capital do meu país, fiz-lhe a primeira visita em companhia de Dona Soledade no ano de 1956, em 1961 fomos novamente e chegamos até Bauru onde morava Josino, posso dizer que para nós foi um dos passeios mais agradáveis que empreendi em toda a minha vida.
Em Bauru, compareceram oito filhos e três genros inclusive Genilda que veio dos estados unidos. Josino, com a gentileza que lhe é peculiar, cumulou-nos de grande carinho e dedicação e ali festejamos em um ambiente da mais íntima cordialidade o Natal e o Ano Novo.
Depois de longa caminhada pela estrada da existência onde passei por longas travessias levado comigo as dúvidas e ilusões penetrei na verdadeira realidade e vi como é difícil esta trajetória na qual transpus grandes desfiladeiros se bem que tenha penetrado em vastas planícies e bosques verdejantes, cheguei ao ponto do destino e não tenho mais aspirações.
Minha maior satisfação é quando visito meus filhos ou por eles sou visitado, nos quais eu noto o carinho e desvelo com que tratam os seus velhos pais, alegro-me em receber suas cartas dando prova de seu amor filial.
Quero aqui fazer referência a uma longa missiva que recebi de Evandro em data de oito de setembro de 1962, naquelas seis páginas escritas em estilo amoroso, ele fazia um relato dos tempos da sua infância quando morávamos no Mane, referia-se aos pontos críticos de nossa vida, também não deixava de mencionar aspectos agradáveis onde conseguimos grandes vitórias e vimos ser concretizada grande parte do nosso ideal.
Esta carta que guardo com grande carinho sempre estou a mostrar a pessoas de nossa intimidade.
Uma das maiores satisfações de minha vida é ver a união que existe entre os nove filhos, verifico que eles se amam mutuamente. Certa ocasião, referindo-me sobre este assunto com o Evandro, recebi dele estas confortantes palavras: “Se somos assim é porque o senhor soube nos educar”.
Estas páginas que escrevo são dedicadas aos meus filhos e hoje vejo a minha existência descambando para o ocaso, dirijo-lhes um apelo para que se compreendendo mutuamente, auxiliando uns aos outros em caso de necessidade, e assim tornar-se-á uma família unida e forte.
Atualmente levo uma vida inativa dedicando-me a leitura de livros e jornais, o meu pensamento está sempre vagando; recordo os tempos da minha infância; vejo em minha memória o meu velho pai que lutou com tanto sacrifício para sustentar uma família numerosa; relembro os tempos do Mane quando eu ia trabalhar na roça com meus dois filhinhos pequenos de oito e nove anos limpando mato de mão, furando-as com os espinhos que pegavam.
Muitas vezes, eu meditando dizia a mim mesmo – sou um criminoso, constitui uma família e estou criando-a neste pé de serra, convivendo com caboclos ignorantes. Isto me acabrunhava porém nas minhas orações pedia sempre ao bom Deus para que me ajudasse e minhas preces foram ouvidas. Hoje, vejo meus filhos gozando de certa independência e fazendo parte da alta sociedade.
Conforme eu disse em capítulo anterior, o meu saudoso pai deixou-me de herança uma pequena caderneta caligrafada com um pouco de sua biografia e alguns conselhos para que observemos os preceitos da religião católica especificamente naquilo que se refere a maior das virtudes – a caridade, e eu reitero este pedido a meus filhos para serem mansos e humildes de coração e jamais deixem de socorrer os necessitados.
Este opúsculo foi escrito ao correr da pena, mesmo que eu fosse um letrado seria necessária uma revisão, portanto aqueles que lerem-no tem que perdoar os erros e borrões.
Se o meu repertório não fosse tão pobre daria para escrever centenas de páginas contando passagens de minha vida, por este motivo vou encerrar pedindo aos filhos que de mim tem alguma mágoa que me perdoem, pois se errei, conforme disse em capítulo anterior foi por não saber acertar.

Fortaleza, 23 de julho de 1964
José Macedo.


Publicado originalmente no blog alagoinha.ipaumirim nos dias 13, 21 e 27 de outubro de 2007.

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