MLUIZA |
Tenho uma amiga que há bastante tempo não vejo. Casou com um estrangeiro e resolveram morar numa praia do litoral de Alagoas. Quando morou perto de mim eu sempre lhe dava carona para a universidade onde trabalhávamos. A sua família era do interior de Pernambuco. Um dia ela me diz:
- Preciso voltar pra casa mais cedo porque mamãe está muito ansiosa. Ela sempre vira uma adolescente quando seu Francisco (nome fictício) está em Recife. Tenho que levá-la ao cabeleireiro, comprar roupa nova, fazer sua maquiagem, cuidar da sua aparência porque ela precisa sentir-se impecável e bonita.
- É o namorado dela? pergunto-lhe.
- Não sei, mas acho que ela ainda é apaixonada por ele. Daí, conta-me o enredo de uma peça sem ‘the end’. Quando jovem, sua mãe teve um namorado que, na época, precisou migrar em busca de um futuro melhor. Prometeu-lhe voltar para buscá-la quando a vida melhorasse. Ela esperou bastante tempo por uma cartinha, um aceno, um recado, uma notícia que nunca veio.
Num tempo em que as mulheres eram pressionadas a casar começou a cobrança familiar.
- Você está esperando o quê? Vai ficar assim até quando? O tempo passa, viu? Se ele gostasse de você mandaria pelo menos um recado.
- Olha, fulano de tal, um rapaz tão bom, interessado, de futuro e você feito besta aguardando quem não vem.
As amigas concordavam.
- Mulher, esse rapaz é tão bom e você vai largar por conta de quem não lhe teve consideração?
Pressão familiar é algo complicado pois que revela-se diuturnamente através dos pequenos gestos e olhares. Funciona como uma pulga que lhe inferniza até você se sentir culpado e se transformar num réu confesso. O tribunal familiar não releva. Em nome de suas expectativas os veredictos não consideram inseguranças, deslizes e fragilidades duramente criticadas, reprimidas e quase nunca perdoadas. E quando o corpo de jurados é constituído por amigos que concordam com o juiz as coisas ficam ainda mais tenebrosas.
A criatura pensa no porvir quando todo mundo faz questão de passar na cara a célebre frase: - Eu não disse ?! É o terrorismo por antecipação desafiando o amor próprio no depois. Quem nunca balançou diante dessa possibilidade atire a primeira pedra.
O certo é que o namorado desaparecido aprumou-se na vida e voltou decidido a lhe pedir em casamento. Mesmo ainda gostando dele, ela não o aceitou por uma razão absolutamente prosaica. Não podia acabar o noivado porque já tinha dado a sua palavra. Engoliu em seco o sentimento reprimido e jogou a toalha. Namorou, noivou e casou com o rapaz promissor.
O tempo passou. Os dois constituíram família, criaram seus filhos, tiveram relações estáveis para o padrão da época, e, enfim, ficaram viúvos. Uma vez desimpedidos da palavra dada aos seus cônjuges, ele passou a vir mais vezes a Recife e retomaram os encontros.
Anos depois, a vida apresentaria a fatura pendente daquela incômoda sensação de incompletude do que poderia ter sido e não foi. Os filhos respeitaram o sentimento e nunca pediram explicações.
Na época, os dois já estavam com mais de setenta anos. Não sei se ainda estão vivos.
MLUIZA
Recife, 07.11.2021