MLUIZA |
"Na
ribeira deste rio
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.
Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
Numa sequência arrastada,
Do que ficou para trás.
Ou na ribeira daquele
Passam meus dias a fio.
Nada me impede, me impele,
Me dá calor ou dá frio.
Vou vendo o que o rio faz
Quando o rio não faz nada.
Vejo os rastros que ele traz,
Numa sequência arrastada,
Do que ficou para trás.
...
Vou vendo e vou meditando,
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando,
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.
Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio,
Porque, se o vi ou não vi.
Ele passa e eu confio."
Vou vendo e vou meditando,
Não bem no rio que passa
Mas só no que estou pensando,
Porque o bem dele é que faça
Eu não ver que vai passando.
Vou na ribeira do rio
Que está aqui ou ali,
E do seu curso me fio,
Porque, se o vi ou não vi.
Ele passa e eu confio."
(Fernando Pessoa, Na ribeira deste rio)
Os primeiros caminhos foram traçados pelos indígenas originários
da região interiorana e ainda por aqueles que expulsos do litoral para lá se
dirigiram. São caminhos primitivos,
picadas e veredas pautadas pela preocupação com a subsistência e a segurança. Eram
caminhos naturais que acompanhavam as margens dos principais rios e riachos da
capitania. A partir destes velhos caminhos
surgiram as estradas das ribeiras associadas à doação das sesmarias localizadas
em áreas próximas aos rios. Estas áreas eram sobretudo valorizadas pela sua
localização que amenizava o problema da escassez de água e, portanto, facilitava
a fixação dos colonos. Estas facilidades orientam a conservação do traçado dos
velhos caminhos indígenas e a edificação dos novos no século XVII.
As
habilidades em conhecer os caminhos através da floresta fizeram de índios e,
posteriormente, outros nativos não apenas guias de viajantes, mas mensageiros inter provinciais tanto pelo seu conhecimento dos percursos quanto pela sua capacidade de
resistência às extensas travessias e aos embaraços dos caminhos.
A colonização não alterou apenas as relações entre o homem e a
natureza, mas, também, entre eles mesmos. Com o colonizador veio a pecuária, a
agricultura de subsistência associada com a propriedade privada, a divisão do
trabalho, o valor do dinheiro, a percepção da natureza enquanto recurso, a
desigualdade na repartição dos resultados do trabalho coletivo e, por
conseguinte, a acumulação de renda.
O
colonizador transforma os caminhos em estradas. Esta alteração representa uma
hierarquização entre possibilidades de deslocamentos considerando a
funcionalidade e os interesses: o tráfego das boiadas e dos viajantes entre
diferentes lugares. A mudança implica numa precária intervenção no ambiente
natural através de uma técnica extremamente rudimentar. Aqui e acolá
faziam-se improvisadas ações pontuais para vencer dificuldades topográficas e
eventuais inundações. Quanto mais claro e definido o leito da
estrada, maior sua importância.
Ao
longo das vias firmavam-se povoados, fazendas de engorda, pequenas vendas e
ranchos para pouso de homens e animais que necessitavam de um local para
recuperar-se na longa caminhada. Multiplicavam-se as transações
comerciais, a produção da lavoura e os pequenos comércios para abastecimento dos que
ali passavam.
Tangidas
por tangerinos e boiadeiros seguiam as boiadas ora buscando pastagens durante as
longas estiagens ora caminhando para as feiras de gado de Pernambuco e Paraíba. Posteriormente, a
intensificação das oficinas de charque no litoral cearense alterou o volume do
tráfego de bois para as feiras de gado.
A
rotina de trabalho de um tangerino era medida em léguas percorridas. Marchando
dia e noite, a jornada poderia variar de quatro a seis léguas em condições
normais. Quando a estiagem dificultava o acesso as fontes naturais de água e
castigava o pasto, a jornada poderia se expandir entre quinze a vinte léguas.
Por questões de segurança, tangerinos e boiadeiros reuniam-se em determinados
pontos previamente acertados para marcharem em grupo.
Na
segunda metade do século XIX, além das estradas principais, existiam várias
estradas subsidiárias que encurtavam caminhos e davam acesso a inúmeros
lugarejos tanto dentro da própria província quanto em províncias vizinhas. Por elas passavam o comércio inter provincial de escravos, víveres, autoridades portuguesas, juízes, padres, viajantes,
pesquisadores estrangeiros, revolucionários, mensageiros, entre outros, que arriscavam
a erma e dura travessia.
Ao
fazer a ligação entre as fazendas, as estradas principais e suas subsidiárias permitiam
a circulação de mercadorias, mas, também, de informações, práticas e regras que
pautavam a ordenação social de um projeto de sociedade verticalizada.
As estradas não só encurtaram caminhos entre o
litoral e o sertão mas baratearam o custo de transporte entre as províncias. As
tarifas marítimas eram muito altas e mais longa era a duração das viagens. Com a avanço do tempo e a intensificação do tráfego,
famílias foram-se instalando em melhores condições e investindo na agricultura
de subsistência. Por questões de segurança, os caminhos mais movimentados eram
aqueles cercados por fazendas e sítios que facilitavam a vida dos viajantes
oferecendo artigos e serviços que facilitavam sua viagem.
Proprietários
de terras, donos de boiadas e padres foram instalando propriedades e fazendas
de gado com casas mais confortáveis, currais mais adequados, equipamentos
rústicos para processamento da farinha, teares, açudes e engenhos rudimentares
para produção de rapadura. Eventualmente,
alguns vaqueiros conseguiram adquirir propriedades o que lhes garantiu
aproximar-se dos grupos dominantes e alcançar ascensão social.
Por
volta da segunda metade do século XIX, com o esgotamento do Ciclo da Carne, o
aumento da produção de algodão e café despertaram para a agro-exportação
promovendo o crescimento da economia. Concomitantemente, abria-se também um
mercado importador para manufaturas francesas principalmente artigos de luxo. As mercadorias vindas de Aracati eram conduzidas por
carros de bois até Icó que era o principal empório da província com muitos
comerciantes portugueses ou seus descendentes que supriam inclusive os sertões
das províncias vizinhas com mercadorias vindas da Europa. Entre Icó e o litoral
trafegavam anualmente mais de mil carros de boi. De Icó em diante, para o sul do Ceará, como a
estrada era intransitável as mercadorias
passavam a ser transportadas no lombo dos animais.
Essa
pujança altera o jogo do poder e consequentemente dos investimentos públicos. É
nesse contexto que as ferrovias entram em cena.
CAFÉ COM PÃO, BOLACHA NÃO
O
projeto ferroviário nacional inaugura sua primeira estação em 1852 como um
investimento predominantemente estatal e sem maiores preocupações com a
lucratividade. Era um projeto político que além de dinamizar as atividades
econômicas contribuía para a manutenção da unidade territorial.
A implantação das ferrovias no
Ceará surge da convergência de uma série de fatores: a formação de uma classe
de produtores no mercado de café e algodão, a conexão internacional através da
exportação, o discurso modernizador do fim do século XIX, a precariedade das
vias de comunicação existentes e as preocupações do governo central em
estabelecer ações de controle e ocupação do território.
Nessa
perspectiva, a Estrada de Ferro de Baturité, iniciada por volta de 1890, embora
justificando-se pelo viés do escoamento da produção agrícola vinda dos sertões
bem como dos produtos desembarcados no porto para atender aos incipientes
mercados interioranos, ela foi executada também como uma ação de controle numa
região em permanentes conflitos políticos e sociais. A principal fonte de recursos para viabilizar
o projeto foram as verbas federais destinadas a prestar socorro aos flagelados
através do financiamento das frentes de trabalho.
No século XIX, o incremento da produção de
algodão e sua exportação para a Inglaterra acontecia no vácuo dos
problemas internacionais ocasionados pela Guerra de Secessão nos EUA. A
situação favorece econômica e politicamente os grupos vinculados a sua
atividade produtora superando inclusive a produção de café e, consequentemente,
passa a ser a principal fonte de renda da estrada.
Do interior para a capital, os trilhos transportavam algodão, carne seca, e outros produtos destinados ao mercado consumidor de Fortaleza e do exterior. Da capital para o interior, ela transportava manufaturas, ideias, modelos de comportamento e estilos de vida. O trem fortaleceu ainda o prestígio de grupos políticos, levou gêneros de primeira necessidade aos flagelados da seca, encampou frentes de trabalho e transportou tropas e munições para regiões de conflito.
Do interior para a capital, os trilhos transportavam algodão, carne seca, e outros produtos destinados ao mercado consumidor de Fortaleza e do exterior. Da capital para o interior, ela transportava manufaturas, ideias, modelos de comportamento e estilos de vida. O trem fortaleceu ainda o prestígio de grupos políticos, levou gêneros de primeira necessidade aos flagelados da seca, encampou frentes de trabalho e transportou tropas e munições para regiões de conflito.
Quando
as estações de Lavras da Mangabeira inaugurada em 1917, e a de Baixio, em
1925, ambas integravam a Rede Viação Cearense (RVC) que havia encampado, em
1910, a Estrada de Ferro de Baturité e a
Estrada de Ferro de Sobral. A RVC foi arrendada a empresa inglesa The South
American Railway Construction Company Limited (SARCCOL). Em 1915 passa para
a administração federal.
A Estrada de Ferro de
Baturité iniciada por volta de 1890 demorou 37 anos até chegar ao seu ponto
final na cidade de Crato, em 1926. Quando a estação de Crato foi inaugurada o
governo central já tinha estabelecido que o novo foco seria o transporte
rodoviário praticamente abandonando o projeto ferroviário e, por conseguinte,
minguando os investimentos no setor. Em
1957 é encampada pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA) que foi extinta
em 2007.
Nesse
post falamos sobre os caminhos e as estradas do Ceará e como essa dinâmica vai
fortalecendo um modelo de sociedade na qual estamos inseridos. É provável que algumas
dessas vias de comunicação, com exceção do trem, tenham cruzado o território
que hoje é o município de Ipaumirim. A nossa preocupação não é determinar uma
trilha. Nós não somos melhores ou piores exclusivamente porque não existe um
rastro da estrada dizendo que ela passou por aqui. O importante é compreender que
a nossa formação vem dentro desse contexto e, portanto, é naturalmente refém dessas
circunstâncias.
Considerando
a nossa localização numa região fronteiriça onde as nossas relações com a Paraíba
são muito próximas e significativas, vamos falar ainda que rapidamente das
estradas paraibanas no próximo post.
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(Edição anotada por Mozart Soriano Aderaldo)
MLUIZA
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30.04.2018