NA FILA DA COMISSÃO

SEBASTIÃO MOREIRA DUARTE
Mesmo vivendo em tempos tão difíceis, eu ainda não tinha experimentado de perto o drama da seca. Aos meus ouvidos ecoavam as palavras dos mais velhos, falando das tragédias de 77, do 15 e de 19, quando os retirantes caíam como folhas secas pelo chão e morriam feito animais caquéticos pelas estradas. Mas eram vozes longínquas, recordada mais para causar admiração. Pois seca de verdade não fazia parte do meu cotidiano. Havia anos em que as chuvas eram poucas, as águas escassas, a lavoura mal sucedida, o gado maltratado. Água, porém, nunca nos faltou, ainda que fosse uma água salobra e cheia de caparrosa como nunca encontrei em qualquer outro lugar do mundo. O velho olho d’água garantia a adultos e crianças o banho à sombra do pé de oiticica e, sangrando em córrego pelo baixio, nos dava uma revência fácil para a abertura de cacimbas quase à flor da terra.
Aí chegou 32. Inverno bom não se poderia esperar. Não só porque 1930 e 31 tinham sido sovinas em chuvas, mas porque, como se dizia, “ano bissexto, ou ele ou o camarada dele”. E a gente, esperando sempre o melhor, pedia a Deus que, no caso, o “camarada” do bissexto 32 já tivesse sido 1931, de safra madrasta.
As primeiras chuvas chegaram. O plantio foi feito. O feijão e o algodão cresceram. Em algumas roças o milho chegou a botar boneca e pendão. Pronto. De repente, os céus se trancaram como torneiras. A natureza nos pregava uma peça, tendo antes levado o que nos restava de sementes de cereais para comer. A lagarta e a abelha silvestre empanzinaram-se como crianças gulosas na lavoura destroçada.
Um ano pela frente sem nada para comer. Para onde iria a minha mãe viúva com os filhos órfãos? A minha irmã Teté, carregando a duras penas o marido reumático numa rede, para onde iria? E Nana, tão miudinha e tão cedo também viúva, o que seria feito dela? E Zefa Bilisqueta, minha prima, moça velha?
Eu tinha, como disse, uma vontade grande de ir morar na cidade. Mas, qualquer, em meio à seca implacável, ouvi essa recomendação de minha irmã Alodias, outro sentimento me animou de imediato a deixar a Lagoa das Braúnas. Distribuindo-me, junto com meus primos Zuca e Oliva, de tia Vitória (irmã de Dosanjo), no apertado espaço de dois caçuás, compondo a mais desajeitada carga de burro, saímos rumo a Cajazeiras, para a casa do meu avô materno, José Joaquim Rolim, funcionário da Prefeitura. Aí pude inscrever-me na fila diária dos necessitados e receber a ajuda que o Governo estava mandando distribuir para os flagelados da seca. Obtive três cartões. Quando o feitor anunciava os nomes de Angelina Duarte Passos, lá me apresentava eu, mal cabendo entre as pernas das pessoas grandes. Com pressa de faminto eu abria a boca larga do saco da farinha, do feijão, da rapadura, recolhendo aqueles mantimentos como quem buscava um tesouro. Na outra ponta da estrada, nas primeiras quebradas do sertão cearense, um grupo familiar inteiro iria ter assegurado a sua sobrevivência por causa daquela coleta miraculosa.
Permaneci nessa incumbência até o mês de março de 1933. De posse do último donativo, resolvi eu mesmo ir deixá-lo em casa, substituindo nessa tarefa a meu irmão Zé Matias. Fazia tempo estava distante dos meus. Pus aos ombros a trouxa da Comissão e larguei a alpercata no eito do mundo, em procura do Melão. Eram umas duas horas da tarde. Eu sabia o caminho, e isso me bastava. Adiante estavam os Veados, dos Lins, depois os Remédios, de Santino, e Antonio Félix, o Boi Morto, até chegar ao Vale Verde, de Luís Boca-aberta, avançando no caminho do São José. Por enquanto, eu seria ajudado pela estrada de rodagem. Depois já escurecendo, eu tocaria pros lados do Riacho do Padre e do Chiqueiro de Cabras. Era uma longa caminhada. A mata poderia meter medo a qualquer um, menos a mim, que superava medo e cansaço pensando na riqueza de alimentos que levava às costas. Da Boa Fé para a Caiçara, o cheiro do resíduo de algodão nos cochos do gado do Major Galdino e os aguapés do açudão cheiroso, sobre cujo balde eu estaria passando pelas nove horas. Depois, o cancelão gemente e, enfim, a provisória, o começo de estrada aberta nas secas anteriores.
Cheguei ao Melão pelas onze das noite, causando a todos a maior admiração. Como podia um menino de apenas dez anos ter andado cinco léguas naquele escuro e com aquele fardo na cabeça? Minha mãe acordou sobressaltada e me abraçou em prantos. Não só voltava a ver o filho ausente, mas aquela façanha lhe trazia à memória a falta do segundo “homem da família”, Zé Matias, assassinado a pouco mais de um mês.
Hoje, contando a história do menino que se fez assíduo à fila da Comissão para amenizar as agruras dos seus, percorro, com os olhos erguidos aos céus, a distância do caminho que me levou, anos depois, na chefia do Poder Público cajazeirense, a distribuir a tantos necessitados anônimos a mesma contribuição que eu dispensava com tanta vontade para a minha família.
Eu entendia aqueles pedintes para além da mera solidariedade, pois aprendera desde cedo o que significa, ao duro, ter precisão.
 Do livro Do Miolo do Sertão, A história de Chico Rolim contada a Sebastião Moreira Duarte,
pp. 25- 28.
Publicado no alagoinha.ipaumirim em 25.09.2009

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